Ódio aos árabes, esquerdistas e assentamentos, uma deliciosa conversa de bar
Sayd Kashua, cronista árabe israelense
Tradução: Uri Lam
“Eu não gosto de árabes”, disse a bela jovem sentada ao meu lado no bar, e ela sabia da minha origem. “Não sei”, ela acrescentou, encolhendo os ombros, tentando conter os calafrios que tomaram conta dela mecanicamente quando pronunciou a palavra árabe, “não sei qual seria a solução para eles, não me importo se irão transferi-los ou se lhes darão um país para que tenham onde apodrecer. O principal é que não precisaremos mais tolerá-los”.
Que olhos lindos ela tem, pensei comigo, tentando determinar, à luz ofuscante do bar, se eram verdes ou azuis. Não consegui. Às vezes eles pareciam azuis e de outro ângulo de algum modo pareciam verdes. Mas o que interessa? O importante é que ela tinha belos olhos e cabelos meio diabólicos que ela mexia com seus dedos longos e delgados.
“Você entende?” Ela perguntou enquanto bebericava uma batida colocada à sua frente (era a primeira vez que eu conversava com uma garota que bebe batida, para mim era uma conquista impressionante, provavelmente por causa da minha dieta e talvez graças à minha camisa preta, preto me faz sentir bem). “E isso não quer dizer que eu nasci em uma casa onde fôssemos de direita. Ao contrário”, a moça dizia, enquanto eu tentava olhar o modo como ela balançava os quadris ou como mexia o pescoço, o que por ora estava difícil porque o bar estava lotado. Ela tinha quadris perfeitos, que eu poderia jurar que foram feitos na medida perfeita para se encaixarem no banquinho elevado do bar. “Na verdade na minha casa todos eram de esquerda”, ela continuou, “meus pais eram esquerdistas. Gente do Avodá (Partido Trabalhista). Você entende?”
“Puxa, que coisa impressionante você está me contando”. Eu fiquei impressionado mesmo com a intensidade da mudança pela qual ela passou. Com tudo o que já havia bebido de cerveja ou de uísque barato, eu era capaz de declarar imediatamente que o Partido Trabalhista jamais foi um partido de esquerda, mas para ela, que bebia a sua marguerita ou sabe lá que diabos como se chama aquela sangria colorida no copo todo decorado dela, vale tudo. Por mim ela também pode alegar que até o Meretz era de esquerda que eu não faria qualquer objeção.
“Eu juro a você, eles eram de esquerda. Mas nas últimas eleições votaram Kadima. E tudo por causa da Tzipi Livni, porque se não fosse, só Avodá. Esquerdistas viciados”, ela riu e eu sorri de volta. “Lembro-me de quando era menina, no bairro de Guivá Tsarfatit (Colina Francesa)...” Ela ia em frente e eu, como qualquer árabe faria, interrompi automaticamente, “Você sabe que é um assentamento”.
“Qual assentamento?” Ela perguntou e eu fiquei morrendo de raiva de mim mesmo. Não só não queria falar de política naquela noite mágica, como aquilo foi principalmente o resultado da minha incapacidade de ouvir. Um milhão de vezes eu lembrei-me de tentar ouvir as pessoas, especialmente as garotas quando elas falam, mas não tem como – certa está minha esposa quando insiste que eu me acho o centro do mundo, que o sol brilha sob mim e que eu jamais, mas nunca mesmo, dava importância ao que as pessoas em volta de mim diziam. Como um idiota eu tinha que dizer alguma gracinha que certamente estragaria aquele papo gostoso que, sem dúvida, avançava para passos mais promissores.
“Me desculpe”, eu disse, tentando parecer daqueles homens que escutam até a raiz dos cabelos dela, “perdão por ter interrompido. Continue, por favor.”
“Não”, ela respondeu com uma expressão de perplexidade”, você disse que Guivá Hatsarfatit é um assentamento?”
“Sim”, respondi como que me desculpando, “mas o que importa? Você sabe, geografia, quem se importa? O que importa é o que você sente, continue, estava fascinante!”
“Uau!” Ela não desistia, e com seu movimento de surpresa ela empinou perfeitamente os seios, “eu não sabia. Tem certeza de que é um assentamento?”
“Meio por cima”, respondi a ela: “Você sabe, Jerusalém é Jerusalém. Mas isso realmente não importa, você estava justamente contando que quando era menina em Guivá Hatsarfatit...” – Eu tentava fazê-la contar sobre sua infância e distanciá-la o máximo que pudesse das fronteiras de 1967.
“Sim”, ela finalmente se lembrou, “lembro-me que quando era pequena, na verdade eu não odiava os árabes. Realmente, era meio que natural. Eles trabalhavam no bairro, às vezes os filhos deles brincavam no jardim público, e prá mim estava tudo certo. Quer dizer, eu não brincava com eles, mas realmente eles não me incomodavam. Mas em algum momento eu simplesmente entendi que ser árabe não é... não sei como definir isso, é como se ser árabe não tem a ver, entende?”
“Absolutamente”, respondi de uma só vez, de pleno acordo: “Eu entendo.” Eu sabia que ela gostava de mim, sabia que se eu a convidasse para dançar ela aceitaria na hora, mas como eu queria ter certeza sobre a profundidade daquilo que estava surgindo entre nós, eu queria que ela falasse mais, quero dizer, eu queria principalmente que ela notasse que eu era capaz de escutá-la. Receei que uma investida direta pudesse fazer com que ela me visse de outro modo, que de uma hora prá outra para ela eu passasse de um homem com uma conversa gostosa para um árabe babão.
“Mas”, continuei lentamente, pausado, pesando bem as palavras, pensando, pensativo, “como tudo começou? Quer dizer, esse ódio que de repente você descobriu”.
“Eu realmente não sei”, ela respondeu, tocando meu ombro como se eu tivesse tocado em um ponto importante, “E meio que, tipo, natural. De repente eu percebi que não gosto de árabes. Não gosto de vê-los na rua, não gosto daqueles que trabalham com meus pais, de repente eu saquei que eles não são como a gente. Eles me parecem tipo os outros, tipo, entende, diferentes. E eles são realmente diferentes, só esta sensação de simplesmente não tem a ver”.
Eu respirei fundo e segurei a sua mão, acariciando-a. “Vai ficar tudo bem”, eu disse a ela, olhando bem nos seus olhos, “eu prometo a você que tudo ficará bem”.
“Não sei”, ela disse, com um jeito de quem está preocupada com o nosso futuro aqui, “às vezes perco as esperanças de que um dia nós estaremos bem aqui”.
“Você vai ver”, eu disse a ela com uma voz suave e segura, “tudo o que é preciso é simplesmente acreditar, e um dia isso aqui ainda será um paraíso”.