segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Parashat hashavua (leitura semanal da Torá): Terumá
Rabino Michel Schlesinger - CIP
A parashá desta semana, Terumá, traz um relato detalhado de como deveria ser a construção do mishcán. Este santuário móvel foi o local de culto dos israelitas durantes as andanças pelo deserto. Cada detalhe do candelabro, a cortina, a arca sagrada, entre outros, é descrito minuciosamente na porção da Torá desta semana.
A construção do santuário e o culto tinham por objetivo criar uma relação de intimidade entre os recém-libertos e Deus. O mishcán era o local onde esta relação se consumava. Ali, naquele oásis móvel de santidade, dava-se o culto a Deus. Naquele local criava-se a base para o judaísmo das gerações futuras.
Quando o povo finalmente assentou-se na Terra Prometida, o santuário fixou-se em Jerusalém e lá permaneceu por diversos séculos.
Com a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 da nossa Era, o culto deixou de ser realizado em um único santuário e passou a estar presente em cada sinagoga do mundo. Além disto, cada residência de uma família judaica passou a ser uma espécie de pequeno santuário (“mikdash meat”) dedicado ao serviço religioso.
A forma do culto a Deus também sofreu mudanças significativas. Os sacrifícios deixaram de ser realizados. No lugar deles, foram instituídas as orações diárias e as refeições festivas.
O objetivo, no entanto, continua o mesmo. Ainda hoje o ritual tem por finalidade aproximar o homem de Deus. Engana-se aquele que pensa que o ritual tem um fim em si mesmo. Não observamos o Shabat pelo Shabat, nem a Cashrut pela Cashrut. Cada uma dessas instituições religiosas tem por objetivo nossa aproximação com o Criador do Universo.
Conta a lenda que havia um rei que amava muito sua única filha. Um dia, ela se casou com um príncipe que morava em uma terra distante. Depois do casamento, o príncipe decidiu levar a esposa para o seu país. Quando o rei percebeu que a sua única filha iria partir, ele disse ao seu genro: “Você sabe o quanto eu amo a minha filha. Ela esteve sempre ao meu lado e agora, eu vou sentir a sua falta. Por isto, eu lhe peço apenas um favor. Onde quer que você e minha filha vivam, construa uma casa para mim ao lado da tua. Assim eu poderei ficar perto de vocês”.
Assim está escrito na parashá desta semana: “Veassu Li Mikdash Veshachanti Betocham”, “façam um santuário para que eu viva entre vocês”. Deus não vive no mishcán. Quando construímos os santuários abrimos um espaço para que Deus esteja presente nas nossas vidas.
O objetivo do ritual não é o ritual em si. Ele é apenas uma ferramenta de aproximação com o Criador do Universo. A idolatria acontece quando passamos a considerar o ritual um fim em si. Nosso objetivo é abrir espaço para que Deus esteja presente em nossas vidas. E para isto o judaísmo tem uma receita de como fazer. Não é a única nem a melhor receita, mas é a forma judaica de colocar Deus para dentro das nossas sinagogas, nossas casas, das nossas vidas. Podemos viajar para muito longe desde que tenhamos sempre uma casa construída nos nossos corações para receber a visita do Rei.
Parashat Hashavua (leitura semanal da Torá): Terumá
originalmente publicado no semanário "Congregar" da CIP em 2010
Uri Lam 
Façam-me um Santuário, e lá estarei presente com vocês
Era uma vez um rei que tinha uma única filha. Certo dia um nobre veio visitá-lo e se apaixonou perdidamente por ela. Conversou com o rei, declarou sua intenção de casar-se e levá-la para sua casa. O rei respondeu: “Meu caro, a sua noiva é a minha única filha. Não posso me separar dela, mas também não posso lhe dizer que não a leve com você”.
E agora, a filha fica ou a filha vai? Este é um dilema comum no nosso dia a dia, em nossas vidas. Quando um casal se apaixona e decide se casar ou viver junto, é natural que queira construir o seu próprio lar fora da casa dos pais. Mas para o pai e para a mãe todo filho é filho único, mesmo que sejam muitos os filhos e filhas. E não é fácil separar-se de nenhum deles. Alguns psicólogos dizem que este é o motivo da emoção e do choro durante a cerimônia de casamento: o desejo de que o filho ou filha fique, e ao mesmo tempo o desejo que ele ou ela vá e construa a sua própria família.
E como o rei da nossa história solucionou o conflito? Ele propôs ao genro: “Você me fará um grande bem se, em todo lugar onde for morar, construir um quartinho para mim de modo que eu possa estar presente com vocês”. (Midrash Raba, Terumá) 
Aprendemos no Zohar que toda sinagoga é um santuário. Quando o povo de Israel se espalhou pelo mundo, cada um de nós foi visto por Deus como a filha única do rei. Ele sabia que tínhamos que partir, mas ao mesmo tempo não abria mão de ficar longe de nós. Não importa se fôssemos para a Babilônia no passado ou para algum país da Europa, para os Estados Unidos, Japão ou Índia, para a Argentina ou Brasil. Onde quer que criássemos nossas famílias, Deus só pediu que lá houvesse um quartinho para Ele, de modo que pudesse estar junto de nós.
A sinagoga é este quartinho. Mas não é o único aposento da casa. Nossa congregação, ao longo de seus quase 74 anos, construiu muitos outros espaços: a escola judaica, os movimentos juvenis, o Lar das Crianças, o departamento de pessoal e financeiro, a Idade de Ouro, a cozinha, salões de festas e de reuniões, a bolsa de empregos, a Chevra Kadisha, a sala da música, a biblioteca, a comunicação, o rabinato, o culto, a lojinha, uma casa no campo, até mesmo um site, o nosso espaço virtual na Internet. Deus tem o Seu quartinho, cujas portas estão abertas para todos os moradores e convidados, mas certamente circula por todos os demais cantos desta enorme Casa Israelita Paulista. 
No midrash, quando o rei propôs ao futuro genro que construísse um quartinho para ele no novo lar, a sua intenção era clara: ele não queria ficar sozinho, mas sim perto da família. O Zohar nos conta que quando a Shechiná se aproxima e vem à sinagoga mas as pessoas não vêm, Ela se pergunta: “Por que Eu vim e não tem ninguém?” De nada adianta uma casa linda, com um quarto de rei, se não houver gente circulando, rezando, estudando, conhecendo-se, doando-se, trabalhando. De nada adiantam os quadros mais lindos e a melhor infraestrutura se não houver crianças brincando, jovens dançando, música tocando – e tudo isso em harmonia, em uma mesma respiração de um único ser vivo: o povo de Israel.
Tudo o que esta congregação nos proporciona nos foi dado como o legado de uma tradição milenar que está à nossa disposição. Como diz um amigo querido, os direitos autorais do que temos aqui nos foram entregues por Deus e pertencem ao povo judeu. A terumá, a doação que Ele espera de nós, é a nossa presença nesta casa, é ocupar o espaço, homens e mulheres, crianças e adultos de todas as idades, para levarmos ao limite e colocarmos em prática todo o potencial colocado ao nosso dispor.
Deus nos deu a Sua Torá e nos pediu para não a abandonarmos. Nossa retribuição é dar à Presença Divina, à Shechiná, a nossa presença, as nossas ações. Se assim for, Deus estará sempre presente e feliz em viver na mesma casa que nós.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A Filha Perdida do Rei - Parte 1
Rebe Nachman de Breslav,  do livro Sipure Maassiot, Primeira História
tradução: Uri Lam, jan. 2011/ Shevat 5771

Respondeu e disse: No caminho contei um caso, e todo aquele que escutou, refletiu sobre se voltar a Deus. Esta é a história:
Era uma vez um rei que tinha seis filhos e uma filha – e esta filha lhe era muito importante. Ele a considerava muito querida e tinha muito prazer em estar com ela.
Certa vez, quando estava junto dela em um determinado dia, ficou irritado com ela e da sua boca escaparam estas palavras: “Der Nit Guter zal dich nemen - O Mal que lhe carregue!” À noite ela foi para o seu quarto e pela manhã ninguém sabia onde estava. Seu pai ficou muito triste e saiu para procurá-la lá e acolá.
Ao ver o quanto o rei estava entristecido, o vice-rei levantou-se e pediu para que lhe dessem um ajudante, um cavalo e dinheiro para as despesas - e partiu em sua busca. Ele a procurou muito, por muito e muito tempo, até que a encontrou (agora eu conto como ele a procurou até encontrá-la).
Ele andou de um lugar para outro por muito tempo – nos desertos, nos campos e nos bosques - e continuou a procurá-la por muito tempo mesmo. Ao caminhar pelo deserto, viu uma trilha lateral e pensou consigo mesmo: “Uma vez que eu tenho andado por tanto tempo pelo deserto e não pude encontrá-la, seguirei por esta trilha. Talvez alcance algum povoado.” E continuou andando por muito tempo.
Depois viu um castelo (que se chama Shlass) com alguns soldados em guarda permanente em torno dele.
O castelo era muito agradável, bem construído e organizado, com seus soldados. Ele temeu que estes não o permitissem entrar, mas pensou consigo mesmo: “Eu irei e tentarei.”
Deixou seu cavalo e seguiu até o castelo. Eles o deixaram entrar e nem foram ao seu encalço. O vice-rei andava de sala em sala e ninguém o seguia, até que alcançou um grande salão e observou que lá estava o rei e sua coroa, com tantos soldados lá e outros tantos cantores com instrumentos diante dele. Aquele lugar era muito agradável e bonito. Nem o rei nem ninguém o questionaram em nada.
Ali ele viu iguarias e boa comida. Levantou-se, comeu, saiu e deitou-se em um canto para ver o que aconteceria. Viu que o rei deu uma ordem para que trouxessem a rainha e eles a trouxeram. Houve muito estardalhaço e grande alegria ali. Os músicos tocavam e cantavam muito enquanto traziam a rainha. Colocaram para ela um trono e a fizeram sentar-se nele, junto ao rei. Era a princesa. E ele, o vice-rei, a viu e a reconheceu.
Depois a rainha observou e notou alguém deitado num canto e o reconheceu. Ela ergueu-se do trono, dirigiu-se até ali, tocou-o e perguntou: “Ei, você me conhece?”.
E ele respondeu: “Sim, eu lhe conheço. Você é a filha do rei que está perdida. Como você chegou até aqui?”.
“Foi quando meu pai, o rei, deixou escapar de sua boca aquelas palavras; e aqui, este lugar, é o lugar do Mal”.
Ele contou para ela que seu pai estava muito triste, que a procurava há muitos anos, e perguntou: “Como posso tirar você daqui?”.
Ela respondeu: “É impossível você me tirar daqui, a menos que escolha para si um lugar e fique lá por um ano. Durante o ano inteiro você sentirá saudades e desejará me tirar daqui. Por todo o tempo que você tiver livre, sentirá somente saudades, e pedirá, e ansiará para me tirar daqui. Você irá jejuar. No último dia deste ano você deve estar em jejum e sem dormir por nenhum instante.” Ele foi e assim o fez.
Ao passar um ano, no último dia, ele estava em jejum e não dormia. Então se levantou e foi até lá. No caminho viu uma árvore da qual cresciam maçãs belíssimas. A vista era muito tentadora e ele parou para comer uma delas. Assim que comeu a maçã, caiu em sono profundo. Ele dormiu durante muito tempo. Seu ajudante tentava acordá-lo, mas ele não acordava.
Finalmente despertou de seu sono e perguntou ao ajudante: “Onde estou eu no mundo?”
O ajudante contou ao vice-rei o que havia acontecido: “Você dormiu por muito tempo, por alguns anos, e eu me mantive com os frutos”.
O vice-rei ficou extremamente entristecido consigo mesmo. Partiu para lá e a encontrou, mas ela estava muito triste com ele: “Porque se você tivesse vindo naquele dia, teria me tirado daqui, e por causa de um único dia você fracassou! Verdade que não comer é algo muito difícil, especialmente no último dia, pois é quando o mau impulso se fortalece mais”.
A filha do rei lhe disse que agora faria uma exigência mais branda e que não mais o advertiria para não comer, porque isso é muito difícil de cumprir: “Assim sendo, volte a escolher um lugar para você, fique lá também por um ano, como antes, e no último dia você poderá comer; só não pode dormir nem beber vinho, para que não adormeça, porque o principal é o sono”. Ele foi e assim o fez. 
A Filha Perdida do Rei - Parte 2

No último dia, quando seguia para lá, viu um líquido fluindo pela terra cuja coloração era avermelhada e seu aroma era de vinho.
O ajudante lhe perguntou: “Você viu este líquido fluindo? Imagina-se que dela flua água, mas de cor vermelha e aroma de vinho?!”
Ele foi, provou da fonte e caiu imediatamente em sono profundo, por muitos anos, por setenta anos! Muitos soldados passaram por lá, com suas carroças de pertences (que se chamam obazin) logo atrás deles. O ajudante escondeu-se dos soldados. Depois veio uma carruagem e outras carroças, e lá se sentava a filha do rei. Ela parou perto dele, desceu, sentou-se ao seu lado e o reconheceu. Ela o agitou muito, mas ele nem se mexeu.
A princesa passou a se lamentar: “Por tantas tentativas e empecilhos enormes que ele teve, por tantos e tantos anos, para me tirar daqui, e por causa deste mesmo dia em que poderia ter me tirado, ele fracassou”.
Ela chorou muito por isso, “mas que pena dele e de mim, pois estou tanto tempo aqui e não posso sair.” Em seguida a princesa retirou o fátsheile (lenço) de sua cabeça, escreveu sobre ele com suas lágrimas, deixou ao lado dele, subiu e sentou-se em sua carruagem - e seguiu viagem.
Algum tempo depois o vice-rei despertou e perguntou ao ajudante: “Onde eu estou no mundo?”.
O ajudante lhe contou todo o ocorrido – que muitos soldados haviam passado por lá, que uma carruagem estivera ali, e que ela chorava muito por ele e gritava de pena por ele e por ela, e que logo depois disso ele despertou.
O vice-rei viu o fátsheile, o lenço, colocado ao seu lado, e perguntou: “De quem é isso?”.
Respondeu-lhe que ela escrevera sobre ele com suas lágrimas. Ele pegou o lenço, ergueu-o contra o sol, passou a enxergar as letras, leu o que lá estava escrito, todas as suas queixas e lamentações - e que neste momento ela já não estava lá naquele castelo. Em vez disso, que ele procurasse por uma montanha de ouro com um castelo de pérolas – “Lá você me encontrará!”.
Ele liberou o ajudante, deixou-o partir - e seguiu sozinho a procurar pela filha do rei. Andou muitos anos procurando por ela. Pensou consigo mesmo que logicamente a montanha de ouro com o castelo de pérolas não podem ser encontrados em nenhum povoado – pois ele era especialista em Mapa Mundi (que se chama Land Kart): “Por isso irei aos desertos”. E saiu a procurá-la pelos desertos por muitos e muitos anos.
Em seguida viu um homem enorme, que por definição não poderia ser humano de tão grande que era. O homem carregava uma grande árvore – em nenhum povoado havia árvore que se comparasse àquela.
O homem perguntou: “Quem é você?”.
Respondeu-lhe: “Eu sou um homem”.
O outro se surpreendeu e disse: “Porque faz tanto tempo que estou no deserto, e nunca vi um homem por aqui”. Então lhe contou todo o ocorrido anteriormente e que procurava por uma montanha de ouro com um castelo de pérolas.
Disse-lhe: “É lógico que isso não existe”, desencorajando-o. E seguiu dizendo que ele havia sido enganado por uma bobagem, pois era óbvio que uma coisa assim não existia em lugar nenhum.
O vice-rei começou a chorar muito: “Com certeza ele existe em algum lugar!”
O homem estranho que o machucou ao desencorajá-lo com suas palavras disse: “Não há dúvidas de que o que lhe disseram é uma bobagem”.
Mas o vice-rei respondeu: “Estou certo de que existe”.
O homem estranho disse para o vice-rei: “Em minha opinião isso é uma bobagem. Mas já que você é tão teimoso... Veja, eu sou o capitão de todos os animais. Por você eu convocarei a todos, pois eles se movem ao redor do mundo inteiro. Talvez um deles saiba algo desta montanha e deste castelo!” Convocou todos, do menor ao maior – todos os tipos de animais – e lhes perguntou - e todos responderam que nada viram. Então lhe disse: “Veja a bobagem que lhe contaram. Escute-me, volte de onde veio, é óbvio que você não irá encontrar, porque isso não existe no mundo”.
Mas o vice-rei insistiu muito e disse que este lugar obrigatoriamente deve existir, com certeza.
O homem estranho respondeu para o vice-rei: “Veja, lá no deserto está meu irmão. Ele é o capitão de todas as aves. Talvez elas saibam, porque elas voam alto no ar. Talvez tenham visto a montanha com o castelo. Vá e diga que eu mandei você até ele”.
O vice-rei continuou a procurá-la por muitos e muitos anos. Então outra vez encontrou um homem tão imenso quanto encontrara antes, carregando uma árvore tão enorme quanto antes. O homem lhe fez as mesmas perguntas feitas anteriormente, o vice-rei tornou a contar tudo o que ocorrera e que fora o irmão dele o enviara. Mas também este o desencorajou, porque era óbvio que este lugar não existia. Porém o vice-rei insistiu.
Então este segundo homem disse ao vice-rei: “Veja, eu sou o capitão de todas as aves. Irei chamá-las, talvez elas saibam.” Ele chamou todas as aves e perguntou a todas elas, da menor até a maior. Elas responderam que nada sabiam sobre uma montanha como um castelo, como antes.
O homem disse ao vice-rei: “Você não percebe o quanto é óbvio que este lugar não existe em canto algum do mundo? Se quiser me escutar, volte de onde veio, porque com certeza isso não existe.”
Mas o vice-rei insistiu e disse: “É claro que ele existe no mundo”.
Então este segundo homem disse para o vice-rei: “Mais adiante no deserto está meu irmão, que é o responsável por todos os ventos – e eles percorrem o mundo inteiro. Talvez eles saibam”.
A Filha Perdida do Rei - parte final

O vice-rei continuou por muitos e muitos anos a procurar, até que encontrou um homem também imenso como os anteriores, que também carregava uma árvore enorme como os anteriores. O homem fez as mesmas perguntas que os outros e o vice-rei voltou a contar para ele tudo o que ocorrera como já fizera anteriormente. Também este o desencorajou, mas o vice-rei insistiu outra vez.
Então o terceiro homem disse para o vice-rei que por ele convocaria todos os ventos e os consultaria. Ele os convocou e todos os ventos vieram. Ele perguntou a todos eles, mas nenhum sabia de tal montanha nem castelo, como antes.
O terceiro homem disse para o vice-rei: “Você não percebe a bobagem que lhe contaram?”
O vice-rei começou a chorar muito, e disse: “Eu sei que existe, tenho certeza!” Enquanto isso, viu que outro vento havia chegado.
O capitão dos ventos estava muito irritado com este vento: “Porque você se atrasou em chegar? Eu não determinei que todos os ventos deveriam vir? E por que você não veio com eles?”
Ele respondeu: “Eu me atrasei porque precisava levar uma princesa até uma montanha de ouro e a um castelo de pérolas”. O vice-rei ficou muito feliz.
O capitão dos ventos perguntou ao vento: “O que há de precioso lá (ou seja, que coisas lá são consideradas valiosas e importantes)?”
O vento respondeu: “Tudo lá é muito precioso”.
O capitão dos ventos disse ao vice-rei: “Uma vez que você já há muito tempo tem procurado por ela e pelo tanto de esforços que você já fez, talvez agora esteja com dificuldades financeiras. Por isso eu lhe ofereço este recipiente; quando você colocar a sua mão dentro dele, receberá o dinheiro que precisar”.
E mandou que o vento o levasse até lá. O vento da tempestade veio, carregou-o até lá e o levou até o portão. Lá havia soldados que não permitiram a entrada na cidade, mas ele colocou a mão no recipiente, retirou algum dinheiro, subornou-os e assim entrou na cidade – e era uma cidade muito agradável.
O vice-rei chegou até um nobre e pagou pela estadia, pois era preciso ficar lá e seria necessário grande sabedoria e inteligência para tirar a filha do rei dali.
E como ele a tirou? Ele não contou. Mas no final a tirou.
(Releia desde o início e você irá perceber metáforas maravilhosas nesta história).

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Parashat Itró
Uri Lam - para o Congregar (Congregação Israelita Paulista) 
Faremos e Ouviremos ou Ouviremos e Faremos?
Se pudéssemos resumir a Torá em poucas palavras, o que diríamos? Há quem resuma a Torá ao pronunciar os nomes dos cinco livros do Pentateuco ou os nomes das porções semanais de estudo da Torá. Outros entendem que a Torá pode ser resumida em uma frase, versículo ou parágrafo que mais a caracteriza, como por exemplo: (1) O Shemá: Escuta Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um; (2) Veahavtá lereachá camôcha: Amarás ao teu amigo como a ti mesmo – era a opinião de Rabi Akiva, para quem esta frase resumia a essência de toda a Torá; (3) os Dez Mandamentos – cuja primeira versão integra a leitura da parashá desta semana; (4) Vezot Hatorá: Esta é a Torá que Moisés colocou diante dos filhos de Israel, dita por Deus, pela mão de Moisés; (5) Naassê venishmá: Faremos e ouviremos. Há outros exemplos, todos belos, significativos, valiosos. Mas se alguém lhe pedir para resumir, em poucas palavras, toda a Torá – o que você irá dizer?
A tradição nos conta que esta é a Torá de Moisés, a sua teoria colocada na prática, o seu modo de se relacionar com as pessoas e com Deus, a sua maneira de agir. Nesta semana, especificamente, somos apresentados a um Moisés extremamente solícito: durante um dia inteiro ele se senta para atender a todas as pessoas do povo, indistintamente. Todos mesmo – crianças, homens e mulheres, jovens e velhos, casais e famílias, todos em pé por horas a fio diante de um único homem, Moisés, que atende pessoa por pessoa. Esta é a sua Torá, este é o seu ensinamento, este é o seu modo de agir. Que homem bondoso é Moisés! Quanta dedicação, quanta empatia, quanta boa vontade! Mas será que Moisés é também eficiente? Será que de fato o povo está confortável e se beneficia da sua dedicação, empatia e boa vontade?
Moisés tem um sogro, Itró, sacerdote de Midian. Ele e Moisés têm uma ótima relação, de respeito e carinho, e também se reconhecem mutuamente como homens de grande sabedoria. Naqueles dias Itró levara até Moisés a esposa e os filhos – mas ele não deu muita atenção à família; estava muito ocupado com o trabalho insano de atender sozinho a todo o povo de Israel. Itró, que olhava a tudo de fora, perguntou ao genro: “O que você está fazendo?” e Moisés respondeu: “O povo vem a mim para consultar a Deus. Quando têm diferenças a resolver, julgo entre um e outro, e em seguida passo a eles as leis e ensinamentos de Deus”. “Não é uma boa ideia agir assim”, retrucou Itró, “você vai se acabar e o povo ficará esgotado.” e em seguida me parece vir a primeira grande lição da nossa parashá: “Moisés, primeiro transmita a eles os ensinamentos e as leis, mostre o caminho a seguir e como devem agir. Durante o processo você identificará os mais capazes, gente honesta e de confiança, reverentes a Deus. Faça deles os seus parceiros. Sendo muitos, eles julgarão o povo não um a um, mas a todos de uma vez, sem filas. Vai por mim, isso lhe facilitará a vida e todos, você e o povo, irão se beneficiar do trabalho em equipe”. Mais juízes para atender menos gente – pois ao conhecerem as regras, menos gente precisa de alguém de fora que lhe diga o que fazer.
Itró deu a Moisés dois conselhos essenciais para o gerenciamento de qualquer comunidade, grande ou pequena: (1) Primeiro ensine as regras e mostre como agir de acordo com elas, e só depois julgue – e não o inverso; (2) Ensine o que sabe para outras pessoas, busque encontrar entre eles os mais capazes, dedicados, confiáveis e honestos - e faça deles seus parceiros.
É para este povo – que primeiro aprende de Moisés e de sua enorme equipe de parceiros – que serão reveladas nesta leitura da Torá as palavras de Deus conhecidas como “Os Dez Mandamentos”. “Tudo o que o Eterno falar, nós faremos”, afirmou o povo a uma só voz.
Esta é a grande lição transmitida por Itró, o sacerdote de Midian, para nós, o povo de Israel, "um reino de sacerdotes, um povo sagrado" (esta é, pelo menos, a expectativa de Deus): primeiro ensinar, para que as pessoas possam aprender a distinguir uma coisa da outra e então possam agir com consciência. Nesta altura dos acontecimentos, a essência da Torá é "Ouviremos e Faremos".
Shabat shalom, de Jerusalém

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Tu b’Shevat, o Ano Novo das Árvores
Uri Lam
“Porque o homem é como uma árvore no campo. Assim como o homem, a árvore também floresce” (Natan Zach, poeta israelense)
Tu b’Shevat, cujo nome se refere simplesmente ao dia 15 do mês judaico de Shevat (no próximo dia 20 de janeiro de 2011), é o Festival das Árvores. Em Israel, a data ocorre no meio da estação de inverno, época das chuvas. É por volta deste dia também que florescem as primeiras flores das amendoeiras, o que leva boa parte da população aos parques e bosques somente para admirar estas pequenas e delicadas flores brancas, que anunciam o despertar da natureza em pleno inverno e o início da preparação para a primavera.
O dia de Tu b’Shevat é conhecido também como o Ano Novo das Árvores, dedicado ao plantio de mudas, a saborear os mais diversos tipos de frutos das mais diversas árvores, e nos tempos atuais nos leva à reflexão sobre os desafios com os quais a sociedade moderna precisa se confrontar quanto à sua atitude em relação à natureza como um todo.
A origem de Tu b’Shevat situa-se no sistema de tributação dos hebreus antigos, que baseava-se principalmente no dízimo a ser pago pelo agricultor: o primeiro dízimo era para os levitas, homens dedicados à vida religiosa e aos estudos; o segundo dízimo era usado para proteger os peregrinos em suas jornadas e reforçar a solidariedade nacional; e uma terceira taxa servia para manter o sistema de apoio social voltado para os mais pobres.
Com a desintegração do antigo sistema de tributação na Terra de Israel, durante os primeiros séculos da era cristã, Tu b’Shevat tornou-se o dia em que os judeus passaram a se voltar para a plantação de árvores, na esperança de que estas pudessem fornecer o suficiente para satisfazer as necessidades do homem.
Na era moderna, o movimento sionista adicionou um novo significado para a data, pois o plantio de árvores se tornou um objetivo fundamental para tornar férteis e agradáveis extensas áreas desérticas de Israel. A árvore plantada foi convertida em símbolo do despertar de uma nação.
Assim como outros feriados judaicos, Tu b’Shevat sofreu alterações ao longo dos séculos. Nos últimos anos, as pessoas da nossa geração começaram a pensar em novos significados para o Festival das Árvores. Aprendemos que as relações entre o ser humano e a natureza atingiram uma crise que compromete a existência do Homem juntamente com a existência de seus outros parceiros da Criação.
Em Tu b’Shevat as pessoas também reforçam o valor do lugar da natureza para garantir o bem-estar do ser humano, a importância da natureza no fortalecimento da raízes de um povo à sua terra, e principalmente a importância da natureza por si mesma, por ser, assim como o ser humano, uma obra da Criação.
Vivemos tempos em que é chegado o momento, mais do que nunca, de marcar na agenda judaica e na agenda de todos os povos da Terra que temos a obrigação de tratar a natureza com humildade, sabedoria e respeito, no espírito do Décimo Mandamento: “Não cobiçarás”, sempre lido no Shabat após Tu b’Shevat como parte da parashát Itró, a porção semanal de leitura da Torá. Com toda a força que a natureza está demonstrando nas últimas semanas no Brasil e no mundo inteiro, Tu b’Shevat nos estimula decididamente a refletir sobre nossas crenças e tradições, e principalmente a agir de modo a estabelecer novas relações de parceria e respeito pelo ambiente natural que nos cerca e que faz parte integrante de nossas vidas. Que ao plantarmos árvores, façamos de Tu b’Shevat um festival de amor pela natureza.
Quem não viu o Templo de Herodes, não viu tão belo edifício em sua vida
Este ano faço um curso de extensão em Modiin (entre Jerusalem e Tel Aviv) prá lá de interessante. Nele estudamos, uma vez por semana, o dia inteiro, passagens do Talmud, textos do Rebe Nachman de Breslav e textos de Nachman Bialik, que vem ainda acompanhados de uma abordagem psicológica que eu diria ser existencialista, voltada para a orientação de grupos. Parece complicado... e é. Mas na prática, o encontro semanal estabelece um diálogo delicioso entre estas diversas fontes judaicas, clássicas, modernas e contemporâneas - e aqui incluo a abordagem psicológica também. Em outras oportunidades espero falar mais deste estudo em grupo.
Na semana passada nos deparamos com um texto difícil. Não tanto de ler, mas principalmente de compreender, de sentir. Esta suguiá (passagem do Talmud) conta sobre Herodes e termina com a frase que dá o título deste post: "Quem não viu o Templo de Herodes, não viu tão belo edifício em sua vida". Veremos a que preço este "belo templo" foi construído, na visão dos sábios do Talmud.
O texto dialoga com outra passagem do Talmud, onde se faz uma comparação entre diversos princípios, por dizer assim, tão importantes para a vida judaica: a sinagoga, o Sefer Torá, a libertação de pessoas feitas prisioneiras. O que tem mais valor, um edifício? ou  a vida dos cativos? Impossível não pensar, para quem está em Israel, nos mais de 4 anos em que o jovem soldado Guilad Shalit está sequestrado e cativo nas mãos do Hamas, em Gaza. Qual preço se deve pagar por sua libertação? Alguns entendem que a vida é o maior valor do judaísmo e que tudo deve ser feito para pagar por sua liberdade. Outros dizem que o preço pedido é muito alto: a libertação de mais de mil prisioneiros palestinos em Israel, entre os quais há um número significativo de terroristas, pessoas que planejaram ou cometeram atentados terroristas, levando consigo a vida de tantos civis israelenses. E qual o preço para resgatar os sobreviventes da tragédia no Rio de Janeiro, bem como resgatar os corpos de mais de 630 pessoas mortas em meio a desabamentos e enchentes? Quanto valem estas vidas - para o governo, para as famílias, para os amigos, para as próprias pessoas que estão sofrendo tanto?
Uma das questões que o Talmud levanta é: o que é mais importante, a construção de uma sinagoga ou a libertação dos cativos? o que é mais importante, a construção de templos e igrejas gigantescas, ou com tanto dinheiro resgatar vidas de condições miseráveis? Sãop questões que ficam em aberto.
Vale à pena ler o texto abaixo (na minha opinião, claro) para ver a que preço foi levantado o Templo de Herodes.
Boa leitura e uma ótima semana.
Quem não viu o Templo de Herodes, não viu tão belo edifício em sua vida...

Talmud Bavli, Baba Batra 3b, 4a
trad.: Uri Lam, Tevet 5771, jan. de 2011 
Herodes, escravo da Casa dos Chasmonaim (hasmoneus), teve seus olhos atraídos para uma certa menina. Um dia este homem escutou a Bat Kol (a “voz divina”) dizer: “Todo escravo que se rebelar agora será bem sucedido”. Ele foi e assassinou todos os seus senhores, deixando somente a menina. Ao ver que ele pretendia se casar com ela, a menina subiu no telhado e gritou: “Quem vier e disser ‘Eu sou da Casa dos Chasmonaim’ [na verdade] é um escravo!” - pois ninguém sobrou deles a não ser a menina – e ela caiu do telhado até o chão. Ele preservou seu corpo em mel durante sete anos.
Há quem diga: “Ele manteve relações sexuais com [o corpo d]ela”; e há quem diga: “Ele não manteve relações sexuais com ela”. De acordo com quem diz que ele manteve relações sexuais com ela, o motivo de embalsamá-la foi satisfazer seus desejos. De acordo com quem diz que ele não manteve relações sexuais com ela, o motivo foi para que dissessem: “Casou-se com a filha do rei”.
[Pensou Herodes] “Quem foi que disse que ‘dentre teus irmãos porás um rei sobre ti’ (Deut. 17:15)? Os Sábios!” Ele foi e matou todos os Sábios, deixando Baba ben Buta, para ter com quem se aconselhar.
[Herodes] Colocou na cabeça [de Baba ben Buta] uma coroa de espinhos de ouriço que lhe arrancou os olhos. Um dia Herodes veio [sem se identificar], sentou-se diante dele e disse: “Veja só, meu senhor, este escravo maldoso [Herodes], o que ele faz!” Disse-lhe [Baba ben Buta]: “O que posso fazer para ele?” Respondeu-lhe [Herodes]: “Amaldiçoe-o, meu senhor!” [Baba ben Buta] respondeu: “Está escrito: ‘Nem mesmo em teus pensamentos você dever amaldiçoar um rei’ (Eclesiastes 10:20)”. Disse-lhe [Herodes]: “Ele não é rei!” [Baba ben Buta] respondeu: “Mesmo que ele seja apenas um homem rico, está escrito ‘e nem mesmo no seu dormitório amaldiçoe os ricos’ (idem); e ainda que ele não seja mais do que um governante, está escrito: ‘e não amaldiçoe um governante do teu povo’(Êxodo 22:27)”.  Disse-lhe [Herodes]: “No caso de quem age como um de seu povo, mas este não age como alguém do seu povo!” Respondeu-lhe [Baba ben Buta]: “Eu tenho medo dele”. [Herodes] respondeu: “Mas ninguém virá e dirá a ele sobre eu e você estamos sentados aqui [sozinhos]”. [Baba ben Buta] Respondeu: “Está escrito: ‘Pois uma ave no céu levará a voz - e quem tem asas contará tudo’ (Eclesiastes 10:20)” Disse-lhe [Herodes]: “Eu sou este homem [Herodes]. Se eu soubesse que os Sábios eram tão cuidadosos, não os teria matado. Agora, como posso consertar o que fez aquele homem?” [Baba ben Buta] Respondeu-lhe: “Ele extinguiu a luz do mundo [ao matar os Sábios], conforme está escrito: ‘Pois a mitsvá [mandamento divino] é a vela e a Torá é a luz’ (Provérbios 6:23). Ele deve ir e se ocupar da luz do mundo, conforme está escrito: ‘E fluirão para [serão iluminadas por] ele todas as nações’ (Isaías 2:2) [Baba ben Buta interpreta “naharu” (fluirão) a partir do termo “nehorá” (luz)]. Há quem diga que [Baba ben Buta] lhe respondeu assim: “Ele cegou o olho do mundo, conforme está escrito: ‘E será que, por causa do olho da Congregação’ (Números 15:24). Ele deve ir e se ocupar do olho do mundo, conforme está escrito: ‘Aqui estou a profanar o Meu Mikdash [o Templo Sagrado], o orgulho do seu poder, o deleite dos seus olhos’ (Ezequiel 24:21)”. [Herodes] Respondeu: “Temo o Governo [de Roma]”. [Baba ben Buta] Respondeu-lhe: “Mande um enviado por um ano até lá [Roma], deixe-o lá por um ano, e que retorne por um ano -  durante este período derrube [o Templo] e reconstrua-o”. Assim o fez. Enviaram-lhe [a Herodes, de Roma, a seguinte mensagem]: “Se você ainda não o derrubou, não o faça. Se você o derrubou, não o reconstrua. Se você o derrubou e o reconstruiu, você é um desses servos ruins que primeiro fazem e depois pedem permissão. Se as armas estão com você, conte de quem você descende; você não é recha [rei] nem descende de um rei, Herodes, escravo que libertou a si mesmo”. O que significa “recha”? Realeza, conforme está escrito: “E eu hoje sou Rach (Rei) e ungido Rei” (2 Samuel 3:39). E caso queira, daqui se depreende [do que foi dito de José, após ocupar o segundo posto de poder, só abaixo do Faraó]: “E diante dele o chamavam de Avrech [termo egípcio que significa “governante”, que os Sábios do Talmud interpretaram como Av Rech, “Pai do Rei”] (Gênesis 41:43). Dizem: Quem não viu a construção [o Templo] de Herodes, não viu tão belo edifício em sua vida.