sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O Que Deus É – ou o que também não é - 5a Parte 
A visão de um professor Waldorf judeu
Samuel Ichmann
O que Deus é – ou o que também não é
Eu gostaria de relatar um conto mais sintomático. Estamos agora não mais no sul da Alemanha, mas no norte. Aqui sopra um vento fresco, as pessoas são mais tolerantes, mais abertas e mais distantes das coisas do que no sul. Voltei para a Alemanha depois de um longo período de trabalho em outro país europeu - no ano 'Hoyerswerda’, na verdade, quando neonazistas adquiriam casas, as pessoas estavam inflamadas e meu regresso para casa não era de todo animador. Com um pouco mais de cabelos grisalhos, um pouco menos de ilusões, mas de forma alguma queimado. Nós, professores de aulas de religião não denominacionais, estamos sentados na biblioteca da escola juntamente com um pastor da Comunidade de Cristãos. Estamos estudando um tema de cristologia. O pastor toma parte da discussão, contribuindo com formulações muito claras.
Na medida em que as coisas se desenrolam, o pastor do norte da Alemanha - uma figura culta, bem-educada e sem dúvida, profundamente conhecedor de temas esotéricos - diz com forte convicção e em um contundente tom de pronunciamento: “Javé (um modo cristão de se referir ao Deus dos judeus – mas não usado por judeus de forma alguma – N. do T.) não é o Deus Pai!” Diga-se de passagem, ele desconhece a minha ascendência judaica. Esta reunião contemplativa não é o lugar certo para um argumento, e não estou muito interessado, de qualquer maneira, em martelar questões de dogma religioso. Conheço os grandes ensinamentos de Steiner sobre a cosmologia e a hierarquia divina, e das perspectivas específicas derivadas da investigação oculta, e os considero como tendo um papel importante na integração desses com o meu próprio conhecimento e compreensão. Vários estudos pessoais também me trouxeram certa familiaridade com os campos patriarcais e escolásticos, bem como sobre alguns aspectos básicos do conselho da Igreja e da história da heresia, com suas disputas sobre dogmas. A questão da trindade me ocupou por um longo tempo - não só como uma questão acadêmica histórica, mas também como uma questão viva e, naturalmente, também em relação à antropologia pedagógica de Steiner que se refere à trindade no homem e no mundo. Tento manter contato com experiências e percepções, como as evocadas pela Meditação sobre a Pedra Fundamental de 1923/24, procurando evitar especulações nas quais o intelecto assume que “sabe o que é o quê” no que diz respeito à divindade.
“Javé não é o Deus Pai”! Eu vou para casa, e este “não é” se recusa a sair de mim. Não é o conteúdo, mas a forma como foi colocado; não a causa, mas a apodíctica “assim é” que me incomoda de alguma forma. Eu, naturalmente, respeito o fato de que um pastor prega – é o trabalho dele, afinal de contas. Talvez ele não tenha que fazê-lo em todos os lugares, o tempo todo, mas todos nós temos nossas falhas humanas. Mas o que eu devo fazer com este “não é”? Eu quero saber o que é que me incomoda sobre isso. Será que é realmente a maneira que foi dita, ou talvez o conteúdo, afinal de contas? Nos dias seguintes decidi fazer pleno uso da biblioteca escolar onde a discussão ocorreu, pois contém uma edição completa das obras de Rudolf Steiner. Com a ajuda de um volume de índice e referência, examino cada passagem que consigo encontrar em que Steiner disse algo sobre o ser de “Javé”. Naturalmente que não posso citar capítulos e versículos aqui, mas como eu li, torna-se muito claro para mim que é impossível determinar um derradeiro “é” ou “não é” a partir da representação dinâmica descritiva característica de Steiner. Ele aborda esta, assim como muitas outras questões, a partir das perspectivas as mais variadas; o estudante só chega a uma compreensão mais plena, além de do próprio texto de Steiner, através da combinação dessas perspectivas! Mas talvez esta seja a minha mentalidade judaica vindo à tona novamente, sem o intuito de classificar o espiritual e o divino na forma de dogma e de frases feitas fixadas por decreto e tornadas obrigatórias para os fiéis. O Judaísmo Rabínico, afinal, contém o princípio da machlóket - ou “multiplicidade de vozes” - na qual diferentes ensinamentos conflitantes podem estar lado a lado sem serem resolvidos. Talvez a multiplicidade de perspectivas no trabalho de Rudolf Steiner seja também uma espécie de machlóket científico-espiritual?
Então algo de grande importância também entra em minhas reflexões. Imagino alguém indo até um judeu religioso e tentando explicar para ele que a divindade para a qual ele reza diariamente não é o Pai de todos, o Criador, a Base da Criação, o Sustentador do mundo, mas “apenas” - bem, o que você quiser. Na melhor das hipóteses ele abanaria cabeça, e com razão. Quem somos nós para, de fora, para mexer com as grandes tradições, ou vir junto com os nossos petulantes valores do aprendizado acadêmico? Pensar que um sabe melhor do que os outros, até onde sei, não pertence às virtudes que Steiner recomendava para aqueles que lutam pelo conhecimento.
Um livro judaico de orações está diante de mim. Orações da manhã, da tarde, da noite: todas imbuídas das mais solenes e sublimes formulações, símbolos e metáforas, que dirigem a pessoa que reza a meditar sobre as derradeiras questões; todas incluem o Nome de Deus. Na Hagadá de Pessach há frases que tornam impossível qualquer reducionismo a aspectos “meramente” hierárquicos, embora este último não precise ser excluído, naturalmente. Inclusive as diferenciações intertrinitarianas, por mais importantes que possam ser em outros contextos, não têm lugar aqui, pois vêm, como se diz na tradição judaica, do pensamento “em grego” e não do pensamento “em hebraico”. E pensar que este pensamento “hebraico”, se não se importam de eu dizer isso, não tem nada a ver com o que às vezes as pessoas rejeitam como sendo “ultrapassado”, “abstrato” e “monoteísta”. O pensamento ‘em grego”, de Dionísio o Areopagita a Vladimir Soloviev, tem seu próprio sabor inigualável, a sua grandiosidade, beleza e verdade profundas. Mas por que deveria ser o único modo de abordagem ao Messias? A religião só pode, no final das contas, ser entendida a partir de dentro, por mais difícil que seja essa metodologia fenomenológica na prática. Se eu tentar compreender o Budismo através dos pontos de vista de Tomás de Aquino, terei falhado antes de começar. E vice-versa, é claro. No cristianismo, naturalmente, as pessoas têm o hábito de considerar o judaísmo como uma mera etapa de preparação, assim como o judaísmo passou a ver o cristianismo como uma espécie de apostasia.
Hoje em dia, acredito, é hora de superar tais hábitos de pensamento. Deixem-me citar outra passagem da Hagadá: “Eu te levei para fora do Egito; nenhum anjo, nem serafim, nem mensageiro. Eu Mesmo - e não outro”.
Franz Rosenzweig, o grande filósofo judeu religioso, articulou a sua compreensão do Messias através do seu “Eu mesmo e nenhum outro”. E foi o mesmo homem que certa vez, referindo-se à espera dos judeus pelo Messias e do ensino do Novo Testamento sobre a segunda vinda de Cristo, fez a enigmática pergunta: se esses eventos ocorrerem, se não serão uma e a mesma coisa!

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