sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O Que Deus É – ou o que também não é - 4a Parte 
A visão de um professor Waldorf judeu
Samuel Ichmann 

Não leia “gravado na pedra”, leia “liberdade”
Eu olho para mim mesmo nos meus primeiros anos como professor Waldorf - há quase 30 anos - sentado na reunião de uma escola Waldorf  no sul da Alemanha, onde completei minha formação. Eu olho para trás com muita gratidão, também para o meu caro colega que estou prestes a citar. Eu o encontrei novamente alguns anos atrás e o agradeci pelas muitas conversas pessoais e úteis que tivemos. Uma pessoa muito modesta, que nunca disse nada sem refletir sobre si mesmo em primeiro lugar, nem nunca adotou uma atitude do tipo “santo dos santos”. As palavras que ele dizia eram, portanto, as de uma genuína convicção que ele, um cientista, obteve de um estado de espírito geral que então ainda predominava na educação Waldorf como uma relíquia dos anos pré-guerra: “O judaísmo”, disse ele, “é meramente uma religião de leis. Ainda hoje um médico judeu estritamente ortodoxo ainda está proibido de curar no sábado alguém prestes a morrer”.
Nós conversávamos sobre as curas de Jesus no sábado tal como descrito nos Evangelhos. Devo salientar que não houve a menor nuance de desdém nem mesmo antissemitismo em suas palavras e na sua atitude. Ele simplesmente o expôs como um fato da história cultural. E não foi desmentido. Nem mesmo por mim.
Em minha defesa, posso dizer que eu, muito jovem, sentado ali, entre autoridades experientes e testadas de longa data, fiquei antes de tudo angustiado. Eu nunca tinha escutado algo assim antes e me pareceu ser diametralmente oposto à ética judaica: “Quem salva uma única pessoa, salva o mundo inteiro”. Em segundo lugar, eu tinha crescido em um contexto religioso, porém não ortodoxo, e não tinha muito conhecimento sobre questões de halachá ou da interpretação das leis rituais. Em terceiro lugar, a discussão se voltara para outro ponto antes que eu voltasse a me concentrar novamente. No entanto, esta e outras situações semelhantes foram um estímulo para mim, para que eu ampliasse e aprofundasse meus conhecimentos sobre o judaísmo.
Em suma, a afirmação acima sobre não salvar alguém no Shabat é falsa. Um médico na verdade está obrigado pelas leis religiosas a tentar ajudar uma pessoa doente prestes a morrer, seja ou não no Shabat. Mas mesmo a afirmação da mais geral, de que a religião judaica está baseada somente nas leis, se observada de mais perto se mostra bastante equivocada. Eu não discuto que há formas fossilizadas de observância religiosa, mas o sentido real da mitsvot - uma palavra intraduzível, geralmente traduzida como “deveres” - está relacionado com uma das atitudes espirituais mais profundas em favor do mundo que conhecemos em toda a história religiosa: a consagração de cada ação, mesmo a mais leve e a menor delas. Em outras palavras, mitsvá é um ato como oração. No Chassidismo essa tendência floresceu em estilo largamente não dogmático. A essência das mitsvot entra todos os dias na atitude de um professor em sala de aula se ele ensinar com intuição moral e imaginação.
Há também uma maravilhosa frase talmúdica que cabe aqui, que explode desde dentro com os limites da compreensão puramente legalista que as pessoas gostam de impor ao judaísmo. Ela surge por uma espécie de jogo de palavras, que tem um papel bastante importante na interpretação bíblica tradicional. Como o alfabeto hebraico tem somente consoantes, uma palavra na Torá pode receber vários significados diferentes de acordo com as vogais que se aplicar. A passagem do Êxodo a que me refiro se relaciona com as Tábuas da Lei, em que os chamados Dez Mandamentos (na verdade, “Dez Palavras”) foram gravados. A frase diz: “Al ticrá charut ela cherut”, que se traduz como “Não leia gravado em pedra, mas liberdade”. Eu recomendo isto como meditação para aqueles que desejam refletir o espírito da Torá, e talvez para outros também. Pode se mostrar uma abordagem útil, por exemplo, interpretar o currículo Waldorf, ou para “ler” outro ser humano, para pensar profundamente sobre a natureza de uma criança e tentar colocar o seu desenvolvimento passado e futuro diante de nossos olhos interiores.

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