Assim ensinei aos meus filhos sionistas a história da Palestina
Sayed Kashua (jornalista, escritor, cronista e publicitário árabe-israelense muçulmano)
original em hebraico: Haaretz
Tradução: Uri Lam
“Pai”, disse o meu pequeno na manhã de sábado, ao abrir a porta e entrar no escritório.
“O que, querido? Estou no meio do...”, tentei afastá-lo de mim.
“Sim pai, vocês me farão uma festa de aniversário?”
“Claro que sim. Mas eu pedi a você que quando falasse comigo, fale somente em árabe, tudo bem querido?”
“Tudo bem”, disse ele, em hebraico. “Então, posso convidar quem eu quero?”
“Pode.”
“Então, eu pensei sobre isso e não quero convidar nenhuma das crianças árabes da sala de aula.” Deus, ele os chamou de árabes, o meu menino, com sotaque ashkenazi.
“O que???” Tirei meus olhos do computador e olhei para o menino de 4 anos que odeia os árabes na minha frente: “Quem você acha que você é, seu bestinha? Você é uma criança árabe”, joguei na sua cara, o que o fez rir como se eu tivesse soltado uma boa piada.
“Do que você está rindo?” Eu brigava com ele e sua expressão mudou. “Eu sou um árabe, você é árabe, sua mãe é árabe e sua irmã é árabe.” Ele começou a chorar e correu para a mãe: “Mamãe, mamãe”, ele apertava os olhos como se sua avó tivesse nascido em Kfar Shmariáhu.
Eu saquei este menino há muito tempo, via como ele sorria quando escutava a mim ou à sua mãe falar hebraico com sotaque. Na semana passada ele se sentou entre nós dois tentando nos ensinar como se diz o “Resh” (“R”) na garganta e como devemos pronunciar corretamente as palavras. “Você fala como os árabes”, dizia Baruch Marzel para a família Kashua.
“O que você quer do garoto?” Minha mulher jogou a culpa sobre meus ombros, “você se muda para um bairro por causa dos filhos, manda ele para uma escola mista (de judeus e árabes), todo dia ele fica grudado no Canal Hop (de TV a cabo de programação infantil israelense) porque não temos uma Al Jazeera Kids. O que você queria?”
“Que odeie árabes?” Eu estava irritadíssimo. “Veja, a sua irmã fez exatamente a mesma rota, por que ela não odeia os árabes?” Olhei para a garota que balançou a cabeça confirmando minhas palavras. “Certo. Eu acho que se chegarmos a um entendimento com eles, será possível viver com eles em paz.”
“Como é que é?????” Gritei do fundo da minha garganta, e dois filhos correram para o colo da mãe, olhando para mim com um olhar fixo como se diante deles estivesse um árabe com seu bigode. Segurei minha cabeça e a sacudi com firmeza. O que eu fiz para mim mesmo, tudo culpa minha! Destruí minha família com as duas mãos, eu só queria que meus filhos tivessem um pouco de verde ao redor, uma biblioteca e uma piscina perto de casa, centros comunitários à mão, e por acaso ganhei dois esquerdistas dispostos a concessões dolorosas. Mas ainda está em tempo, tentei me recompor, ainda dá prá consertar, e tem que ser já. “Vamos, quero todo mundo vestido”, anunciei naquele mesmo sábado, “vamos passear”.
“Viva!!!!” Gritou o pequeno sionista feliz da vida, e começou a cantar: “Quem quer viajar pela Terra de Israel?”
“Para onde vamos?”, perguntou minha esposa em direção ao carro. “Para Ein Kerem”, respondi, “eu preciso ensinar a eles um pouco da verdadeira narrativa”, e balancei a cabeça, “eu disse narrativa? Ensinar-lhes um pouco de história, alguns fatos prá contrabalançar o veneno que eles absorvem.”
De fato eu sou contra todo frasco de veneno nacionalista que misturam no leite das crianças, mas os meus filhos não me deram escolha. Não há dúvidas de que eles são expostos à maioria dos mitos de Israel, e para amenizar um pouco o dano preciso lhes dizer a verdade como eu a entendo. Devo ser rígido e ir um pouco além das minhas crenças. E daí se eu desprezo toda espécie de nacionalismo? Ribonô shel Olam (Soberano do Universo), meus filhos odeiam árabes!
Passeei com as crianças pelas ruas de Ein Kerem. Apontei para as casas e lhe contei a história da Palestina. Eu disse a eles sobre o imperialismo, sobre o congresso sionista na Basiléia, sobre os inocentes camponeses palestinos, repeti duas vezes o fato de que a maioria dos palestinos nem sequer sabia quem era Hitler, expliquei a eles que ele foi brutal e terrível e que mesmo que tenha sido fotografado com um ou dois árabes, isso não era prova alguma de que ele era um árabe. Continuei da 2ª Guerra Mundial direto para o Mandato britânico, voltei para a Declaração Balfour, saltei para 1948, a ocupação, a deportação e os refugiados. Meus filhos me deixavam a impressão de que estavam escutando cada palavra, digerindo, entendendo a realidade e identificando-se com ela. Eu lhes contei sobre seu avô que foi morto na guerra e eles deixaram cair uma lágrima, compartilharam da tristeza da avó, que perdeu seu marido e sua terra.
“Estão vendo, crianças?” Eu mostrava as provas e ficava na frente da minha família em posição de guia turístico diante do centro da vila, “aqui ficava a mesquita da aldeia. Como vocês vêem, a cúpula ainda existe, assim como torre do muazin (de onde se chama para as orações islâmicas). E ali em cima vocês podem ver a igreja.”
“Pai”, me chamou o menino.
“Sim, querido”, respondi baixinho, sabendo agora que havia contado a eles umas tantas verdades dolorosas sobre a identidade palestina, “Se você tiver alguma pergunta, a hora é esta.”
“Sim, eu tenho”, disse ele, apontando para a rua, “é verdade que lá em cima tem sorvete?”
“Diga-me”, meu rosto queimando de raiva, o que exigiu a intervenção de minha mulher que se colocou à minha frente, impedindo-me de chegar ao meu filho. “Você enlouqueceu?” Ela sussurrou para mim, enquanto virava a cabeça com um sorriso para acalmar o filho.
“Mas você ouviu o que ele falou?”, eu disse, “conto a ele sobre a Nakba e ele quer sorvete. Eles não têm um pingo de sensibilidade para o sofrimento do povo palestino.”
“Devagar, devagar”, disse minha esposa, “justo agora eles começam a entender.”
“Você acha?” perguntei, e mais tranqüilo pelas evidências de que o que havia contado aos meus filhos estava surtindo efeito.
“Sim, querido”, respondi depois de respirar fundo, “tem sorvete, e dizem que é um dos melhores da cidade. Mas primeiro vou contar sobre o massacre de Deir Yassin. Depois disso eu compro prá vocês o que vocês quiserem.”
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