terça-feira, 12 de maio de 2009

Rabino Norman Lamm está louco para rezar um Kadish
"porque Narciso acha feio o que não é espelho" (Caetano Veloso, Sampa)

Em uma "cantada de vitória" despropositada e prá lá de estranha em se tratando de um homem da importância do rabino Norman Lamm para o meio ortodoxo-moderno (ops, uma tentativa de modernização da ortodoxia - isso pode), o rabino de sobrenome próximo ao meu afirmou estes dias que, "com o coração pesado, digo que logo diremos um um Kadish para os movimentos conservador e reformista."

Coração pesado??? Será que ele quer que acreditemos que ele sente muito pela "visão" ou "profecia" do fim dos movimentos judaicos não-ortodoxos? Este é um dos grandes sonhos do rabino, que aproveitando-se de um período de crise o revelou agora abertamente: um mundo judaico formado por charedim e ortodoxos modernos será o Jardim do Eden na Terra. E por que os ortodoxos modernos? por que não apenas charedim, ortodoxos, ultra-ortodoxos? Ah, porque ele, Norman Lamm, se inclui naqueles que devem sobreviver. Claro.

Talvez nós, judeus liberais, conservadores, reformistas, mereçamos este tapa na cara. Um dia também dissemos, sem o cinismo do "coração pesado", mas com a mesma arrogância, que os judeus ortodoxos estavam obsoletos e prestes a desaparecer, figurariam nos livros de história. Estávamos redondamente errados. O mesmo erro comete agora o porta-voz de milhares de sonhadores: sonham que os movimentos liberais estão agonizando. Sonham isso porque não reconhecem aqueles como judeus, portanto, não reconhecem que eles tenham forças de se levantar de novo, após ou em meio a dificuldades. Isto é, se estivermos no nível de dificuldades que ele imagina. E estou certo e convicto de que a imaginação do rabino é uma miragem, fruto do seu próprio desejo.

A Torá diz que antes que o nosso próximo caia, devemos oferecer ajuda. O rabino Norman Lamm prefere dar mais um empurrão e se preparar para rezar um Kadish por nós. Mas se, como ele diz, nós, reformistas, não estamos no quadro judaico, por que rezar um Kadish por nós? Não se reza um Kadish na morte de judeus? por que ele rezaria no nosso enterro, se não nos considera como tais?

Eu já tive curiosidade e vontade de entrar em contato com ele, saber se somos da mesma família. Hoje perdi totalmente esta vontade e já sei que mesmo que fôssemos da mesma família, seríamos parentes distantes - que se encontram em casamentos e enterros - e não saímos na mesma foto.

O rabino Lamm baseia o seu Kadish iminente em informações sacadas de uma pesquisa de 2001 da realidade judaica americana. Uma longa pesquisa, que traz muitos dados interessantíssimos sobre as virtudes e fraquezas de todos os movimentos judaicos nos EUA. Uma pesquisa de 8 anos atrás, aliás - e já deve haver outra a caminho, até 2011. O rabino fala de escolas fechando, não levando em conta, além das crises internas, a crise externa que também pegou a sua própria Yeshiva University no contrapé, que vem causando fechamentos ou dores de cabeça a comunidades ortodoxas tão grandes quanto as dificuldades por ele apontadas nos meios não ortodoxos.

Nestas horas me lembro da canção do Cazuza: "Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder - ideologia, eu quero uma pra viver." Que decepção, rabino! Mas grandes líderes judeus também são humanos, e têm uma enorme capacidade de se autoboicotarem e mancharem suas histórias. Isso independe de movimento judaico. Ortodoxos, chassidim, conservadores, reformistas, reconstrucionistas, humanistas, seculares - todos têm seu momento tão humano de expor a sua tendência destrutiva. Norman Lamm deixou claro que não é exceção à regra.

Em Israel, vejo a força da ortodoxia. Em Israel vejo também a força do Chabad, e do movimento reformista - pequeno por aqui, mas extremamente idealista, engajado, corajoso, jovem, e crescendo. Em Israel vejo a força do movimento conservador, dos membros de suas sinagogas, dos seus jovens. Em Israel vejo a força de novas sinagogas ortodoxas modernas (da linha do rabino Lamm? talvez sim, talvez não...) onde, diferente do que diz o rabino, mulheres dirigem serviços religiosos, lêem na Torá e estão a um passo, a olhos vistos, de anunciarem suas primeiras rabinas. Elas estão prontas para isso - falta a primeira corajosa a entrar no Mar Vermelho e não ter medo de que ele se feche sobre ela. A tenda vermelha está prestes a se abrir. Falta pouco.

Um consolo: se é tão difícil para um rabino como Norman Lamm conviver com a diferença, então nós, simples mortais, podemos ser mais condescendentes com nossos próprios erros e preconceitos.

O rabino Lamm quer rezar um Kadish para nós, judeus reformistas e conservadores.
O futuro rabino Lam (se Deus quiser) prefere rezar um Mi Sheberach para o rabino Lamm, para que seu coração pesado encontre refuá shlemá, cura completa, e deixe seus desejos mórbidos de lado.

"E amarás o Eterno vosso Deus de todo teu coração, de toda a tua alma e com todas as tuas forças. E que estas coisas, que Eu te ordeno hoje, estejam sobre o teu coração" (1º parágrafo do Shemá). O Shemá está no centro das nossas orações. O Kadish para os enlutados encerra o serviço. Entre um e outro, caro rabino Lamm, tem muita água prá rolar.

Por fim me lembrei de uma famosa expressão: Kol Israel arevim ze lazé, geralmente traduzido como "todo judeu é responsável um pelo outro". Responsabilidade inclui amor e desejo de que o outro judeu permaneça vivo e bem. Mas "arevim" também significa estar envolvido. Assim temos: "Todo judeu está envolvido um com o outro". Não tem jeito. Gostemos ou não, estamos envolvidos uns com os outros, afetivamente, historicamente, espiritualmente. Quem tem consciência disso não pode sonhar com a morte do seu próximo.

Que um dia judeus de todas as linhas e origens possam sim rezar um Kadish - mas pela vida, de louvotr e agradecimento a Deus. Após um longo e agradável dia de estudos de Talmud, por exemplo, rezaremos um Kadish agradecendo por respeitarmos nossas diferenças, seguindo o exemplo dos nossos sábios talmúdicos, de Hilel e Shamai, por exemplo, para citar os mais conhecidos. E então cantaremos juntos: Hine ma tov uma naim shevet achim gam iachad, como é bom e agradável todos os irmãos estarem novamente juntos.

A única coisa que quem sabe um dia poderei rezar em uníssono com o rabino Lamm será a oração que encerra o Kadish: "Aquele que faz a paz nas alturas celestiais, Ele fará a paz sobre nós, e sobre todo o povo de Israel." Que assim seja.

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