terça-feira, 22 de junho de 2010

Congregar (CIP) Parashát Balac
A Torá do lado de fora e nós do lado de dentro? 
Uri Lam

Durante uma aula de Talmud nos foi pedido para escrever, na língua materna, o que viesse à mente sobre a frase: “A Torá do lado de fora e nós do lado de dentro”. Ao apresentar o que escrevi, em vez da ‘tradução simultânea’ para o hebraico, me foi pedido para ler... em português. Eu falava aos colegas numa língua que eles não entendiam. A sensação era perturbadora, pois por um lado me senti dono de uma informação à qual eles só teriam acesso se eu quisesse. Mas também me senti sozinho dentro de mim, com a Torá do lado de fora.
Foi quando me deparei com esta estranha passagem do Talmud: “Moisés escreveu o seu livro [a Torá] e a parashat Bilam” (Baba Batra 70b). Afinal, o relato de Bilam está dentro ou fora da Torá? Mas se nesta semana lemos na Torá que Bilam foi assediado por Balac, rei de Moav, para amaldiçoar o povo de Israel e no fim o abençoou com “Quão boas são as tuas tendas, Jacob, as tuas moradas, Israel”, o Ma Tovu que cantamos quando entramos na sinagoga!
Conta-se que Rabi Meir e Rabi Natan, desgostosos com Raban Shimon ben Gamliel, tramaram derrubá-lo do cargo de presidente do Bet Midrash (casa de estudos), mas o golpe fracassou e Shimon ben Gamliel ordenou que fossem expulsos, colocados para fora. No entanto, os dois contribuíam tanto para a compreensão da Torá que Rabi Iossei protestou: “A Torá fica do lado de fora e nós do lado de dentro?!” Shimon ben Gamliel decidiu que eles poderiam retornar ao Bet Midrash, mas de agora em diante os ensinamentos de Rabi Meir seriam citados como “acherim” (os outros) e os de Rabi Natan como “iesh omrim” (há quem diga) (Talmud, Horaiot 13b). Foi o modo encontrado para que a Torá deles permanecesse dentro da sabedoria judaica.
Mas e Bilam, o que alguém como ele, pronto para nos amaldiçoar, faz dentro da Torá? Ele é um profeta à altura de Moisés, o que levou Balac a convocá-lo como a derradeira chance de derrotar Israel. Onde está a diferença? Moisés faz o que Deus ordena, às vezes concorda, outras vezes discute ou se cala, mas age com integridade: ele faz o que pensa que deve ser feito. Bilam faz o que Deus ordena, mas o que faz nem sempre é o que pensa que deveria ser feito. Moisés ama os animais; o amor por seu rebanho o leva a encontrar Deus. Bilam maltrata o burro que só faz servi-lo, a ponto do animal ter que falar “o que eu te fiz para você me bater três vezes?” para Bilam entender que este salvara a sua vida. Em outras palavras: a Torá de Moisés − a sua relação com Deus, com os seres humanos e com as criaturas – é completamente diferente da Torá de Bilam.
Mesmo assim, lemos esta semana o relato sobre Bilam. Dentro da Torá. Mesmo que o Talmud diga que Moisés escreveu a sua Torá e o relato de Bilam em separado, é fato que Moisés não deixou a “Torá de Bilam” de fora da sua Torá. Que bom. O mesmo Bilam que poderia ter sido um pesadelo para Israel foi quem nos brindou com o Ma Tovu.
Conta-se que quando Amimar, Mar Zutra e Rav Ashi estavam juntos, foi proposto que cada um dissesse aos demais algo que jamais haviam escutado antes. Um deles falou: “Quem tiver tido um sonho e não souber dizer o sonhou, levante-se e diga: “Senhor do Universo... entre os sonhos que tive, dos que precisarem de cura, que sejam curados como pelas águas amargas das mãos de Moisés... e assim como Você fez com que a maldição de Bilam se tornasse uma benção, faça com que meus sonhos venham para o bem.” (Talmud, Brachot 55b)

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