A delicada diferença entre Pessach e Páscoa
Nestes dias de Pessach e de Páscoa cristã acompanhamos alguns fatos constrangedores. Pressionado pela divulgação de escândalos de pedofilia nas últimas semanas, o frei Raniero Cantalamessa, uma grande liderança da Igreja Católica, em seu discurso diante do Papa e diante do mundo inteiro, comparou o ataque à igreja por conta dos casos de religiosos pedófilos à perseguição antisemita aos judeus - e colocou isso na boca de um "amigo judeu", que lhe teria escrito justamente isso. Tudo em plena Sexta Feira da Paixão. A declaração causou protestos pesados por parte não apenas de lideranças judaicas, mas também de famílias e organizações que combatem a impunidade aos padres pedófilos, fazendo com que o frei Cantalamessa se desculpasse poucos dias depois.
Talvez tenha ficado muito claro o quanto cristãos e judeus veem o mundo de ângulos diferentes, ainda que seja o mesmo mundo. Talvez Cantalamessa não tenha ideia do que seja, na pele, o antissemitismo. Se alguem foi atingido, violado, ferido violentamente, em algo que se compare às mortes causadas pelo antissemitismo em todos os tempos, estes foram as crianças violadas e suas famílias. Talvez Cantalamessa tenha se referido à condenação de todos os catolicos pro conta de alguns padres pedófilos - como se os crimes nazistas ou da Inquisição ou dos pogroms russos fossem uma punição a todos os judeus por conta de alguns judeus maldosos. Comparação infeliz, grotesca. Ele não feriu a sensibilidade do povo judeu, mas feriu a lógica e o bom senso humano.
Uma relação delicada
O diálogo judaico-cristão tem muitas historias de sucesso nos últimos anos, em particular com a Igreja Católica. Há mais de 40 anos atua um forum do diálogo cristão judaico no Brasil, com participação de padres, freiras e lideranças laicas católicas, bem como de rabinos e lideranças laicas judias, com bons frutos de convivência e respeito mútuo.
No entanto, talvez por falta de informação, algumas lideranças judaicas acabam se encontrando com lideranças cristãs interessadíssimas em fazer com que os judeus, esta gente teimosa, finalmente aceitem Jesus como seu Messias. Encontram-se com gente que pretende transformar o diálogo judaico-cristão em monólogo em nome de Jesus (estrategicamente chamado por eles em hebraico de Yeshua).
Há alguns anos, e provavelmente repete-se ainda hoje, um ex-membro da Knesset, o parlamento israelense, encontrou-se com líderes de grupos cristãos messiânicos que se identificam por nomes como judeus messiânicos, judeus por jesus, e por aí vai. Nos EUA, o berço dos movimentos messiânicos.
O encontro ocorreu em meio a outro, entre judeus e grupos cristãos protestantes/evangélicos pró-Israel nos Estados Unidos. A questão de termos amigos cristãos que defendam o Estado de Israel é vista com bons olhos e alegria. A questão é se no meio de gente bem intencionada, não há também grupos que veem nestes encontros um modo de tentarem se legitimar como "judeus em cristo", posando ao lado de lideranças judaicas que mal sabem com quem estão lidando, e assim abrir caminho para sua obra missionária de conversão de judeus, passsando a ideia de que é possível ser judeu e acreditar em Jesus como Messias, como se não houvesse nenhuma contradição inerente.
Foi o caso, provavelmente, do ex-parlamentar do Partido dos Aposentados Elhanan Glazer. Em 2008 participou, junto com outras lideranças judaicas, de um encontro nos EUA com grupos cristãos pró-Israel. Entre os convidados estava também o rabino Tovia Singer, notório defensor do povo judeu contra o assédio messiânico. Ao saber, porém, que no mesmo encontro falariam lideranças messiânicas, o rabino Singer, bem como o rabino Beny Elon, se recusaram a participar do evento e cancelaram a vinda ao encontro. Elhanan Glazer permaneceu.
Alguns grupos evangélicos de "judeus por jesus" têm se sentido mais confiantes para tentar espalhar o evangelho entre judeus quando contam, provavelmente de modo incauto, com visitas de parlamentares como as do senhor Elhanan Glazer - que é bom enfatizar, esteve no parlamento anterior, mas não conseguiu se reeleger e não é parlamentar da Knesset. Hoje Elhanan deixou o Partido dos Aposentados e tentou se eleger pelo partido de extrema-direita Tzomet nas últimas eleições, mas não obteve sucesso. Improvável imaginar que um judeu se considerasse admirador de uma pessoa que, ainda que por desinformação ou falta de tato, apoie grupos que pretendem fazer de nós algo que não somos.
Diálogo Judaico-Cristão sim. Monólogo, judeu-cristão, não
O tom da convivência pacífica entre judeus e cristãos deve se dar pelo diálogo, conhecimento mútuo, atividades de solidariedade e ajuda ao próximo. Mas que esteja sempre claro o que os une e os que os diferencia. Acreditar no amor ao próximo, em Deus, permite o diálogo e a atuação conjunta. Mas o afã de buscar nos fazer acreditar em Jesus como divindade ou Messias nos afasta. Mantenhamos, pois, o diálogo com quem quer o nosso bem do jeito que somos, e não "o nosso bem" ao se dedicarem a nos fazer um povo cristão. Nada contra os valores cristãos, mas como judeus, nosso destino, nossas práticas e crenças são outras.
Que continuemos nós, judeus, a celebrar sempre a nossa liberdade de sermos quem somos, a comemorarmos em Pessach a libertação do Egito, da escravidão, e que possamos seguir o nosso caminho em busca da Terra Prometida.
E que os cristãos continuem a comemorar a sua Páscoa celebrando a morte e renascimento de Jesus.
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