Não se preocupe antes da hora. Cada coisa ao seu tempo
Uri Lam
Complicado seguir esta máxima né? Prá mim, pelo menos, é. Mas que ela evita muito sofrimento, lá isso evita. Não quer dizer "viva o hoje que o amanhã é incerto". Mas talvez "viva o hoje e pense no amanhã, mas o futuro, o futuro lá longe, relaxe, porque a Deus pertence". Quer dizer: a gente às vezes perde tanto tempo se preocupando com questões tão distantes ou com fantasias do tipo "E se...?" que não tem cabeça prá resolver tantas outras mais próximas e geralmente mais simples, porque a cabeça está em outra galáxia.
Tudo isso eu fiquei pensando enquanto estudava uma questão prática, mas que está tão distante do nosso dia a dia: quando morre alguém, como lidar com o morto?
Hoje a maioria das pessoas não precisa se preocupar em como lidar com um cadáver. A morte foi escondida dentro dos hospitais e velórios. Outros fazem isso pela gente. Aí somos poupados de ver um cadáver ( é um alívio: eu vi uma vez na vida e não dormi por três dias, sonhando com aquela mulher morta no caixão...) Só que aí também desaprendemos de lidar com a morte e criamos toda sorte de fantasias e idealizações para este instante que, de tão desconhecido, nos aterroriza.
É uma ansiedade que nos perturba muito enquanto não identificamos por que estamos ansiosos. Quando o monstro ganha um nome, fica mais fácil de lidar com ele - e de repente, nem é o monstro que imaginávamos ser, ou nem é um monstro.
O artigo de Véred Nôam, האומנם 'לא המת מטמא'? לדיוקנה של הטומאה בספרות התנאים (Será Fato que "O Morto Não Contamina"? Uma Análise da Tum'á nos Escritos dos Tanaím) para o curso de Talmud, nem fala nada disso. O tema da pesquisadora é: os rabinos da época do Talmud consideravam que um cadáver era inerentemente impuro e contaminava quem o tocasse, ou esta "força de contaminar" não é inerente ao corpo morto, mas sim uma construção intelectual que foi feita halachá, uma lei criada artificialmente para se lidar com um corpo sem vida?
O que me chamou a atenção mesmo no artigo foi uma citação retirada do Talmud, no Tratado Nidá - que parte da idéia de que uma mulher no período menstrual "está impura" ou "pode contaminar" para estender o tema a tudo o que sob certas condições se torna impuro e com poder ou não de contaminar, e assim precisa ser temporariamente isolado - ou não.
Ih, mas isso dá muito mais pano prá manga... a mulher fica impura mesmo neste período, ou esta é uma construção intelectual, criada artificialmente para justificar ou embasar certas práticas e costumes, como evitar relações sexuais no período e impedir a mulher de se aproximar dos rolos da Torá? Não dá pano só prá manga, dá prá uma confecção inteira. Bom, vamos nós finalmente ao responsável por toda esta viagem: o Talmud.
O rabino respondeu: “Um morto contamina, mas estátua de sal não.”
“E o filho da shunamita, contamina?”
“Um morto contamina, mas um vivo não.”
“A contaminação dos futuros mortos: é necessário aspergir no terceiro e no sétimo [dias após a morte, para purificar] ou não precisa?”
E o rabino respondeu: “Quando ressuscitarem saberemos por eles”.
Uma questão de gênero
Um detalhe: no texto em hebraico, o pronome na 3ª pessoa do plural aparece uma vez como lahem (para eles) e duas vezes como lahen (para elas). Mas lahen também pode se referir ao masculino, como ocorre muitas vezes, quase sempre, no Talmud. Se forem mulheres, pode se imaginar a maior preocupação delas com o triste fim da mulher de Lot, sobre o que será do "filho da shunamita" ou o que será de nós em um futuro distante. Se forem homens, poderia se pensar talvez em questões outras, técnicas, de leis, etc. Como aparecem no texto os dois, lahem (para eles) e lahen (para elas), podemos ficar com a suposição de que a morte preocupa homens e mulheres, talvez de modo distinto, mas igualmente perturbador. E não me venham com "isso é detalhe". Rabi Akiva interpretava até as coroas que embelezam algumas letras do alfabeto, que por sua vez gerou um lindo midrash - que fica para outra vez.
Chozer Biteshuvá ou Chozer Bisheelá?
Os rabinos eram mestres em levantar um mundo de questionamentos em meia dúzia de linhas e os primeiros a entender que ser um chozer bisheelá (voltar a perguntar, a duvidar, a repensar, a refletir) é mil vezes mais importante do que ser um chozer biteshuvá (voltar à resposta, interpretado por alguns como "arrepender-se", aceitar o jugo da Lei tal como foi estabelecida e fixada por determinados sábios de determinada época - sem espaço para questionar, porque são mais sábios do que nós: que se obedeça; que se cumpra a lei).
A primeira pergunta o rabino tirou de letra. A mulher de Lot não teve uma morte natural. O seu corpo não se tornou um cadáver, mas uma estátua de sal - e sal não contamina. Esta foi fácil.
A segunda pergunta é mais complicada, porque se refere a um evento particular e nada corriqueiro de um garoto que é ressuscitado por Elisha, de quem a Bíblia Hebraica conta que tinha talentos, digamos, fora do comum. Mas outra vez o rabino se sai muito bem. Se alguém morre e você tocar no cadáver, ficará contaminado, impuro, deve haver procedimentos específicos e no momento certo, dá prá entender. Mas e na hipótese desta pessoa ressuscitar, como ocorreu com o "filho da shunamita", ele continua impuro, contaminará os outros quando for dar a mão, um beijo, ou mesmo quando for falar de perto? É claro que não! O rabino deixa claro o óbvio: que uma pessoa viva não está morta, não transmite contaminação referente aos mortos, não tem aspecto de morta, não causa ojeriza como se estivesse morta - e portanto, deve ser tratada como todo mundo. E como a gente age hoje, táchlis, com pessoas que passaram situações mais brandas do que a morte - ou seja, qualquer coisa que acontece com todos os que estão vivos: tocamos, visitamos, telefonamos?
A terceira pergunta mostra um avanço, uma visão mais abstrata. Aqueles homens e/ou mulheres de Alexandria perguntam ao rabino como será no Olam Habá, no Mundo Vindouro: todos os que um dia vão morrer - ou seja, eu, você, todos nós - caso ocorra de ressuscitarem, estarão impuros?
O legal é que agora o que eles perguntam não é mais sobre a infeliz da mulher de Lot que virou estátua ao querer olhar um mundo que já não existia mais, tampouco sobre um garoto ressuscitado por um homem dotado de poderes extraordinários como era Elisha. Agora querem saber se eles, ou seja, se cada pessoa do mundo será condenada a ser impura justamente quando ressuscitar no Mundo Vindouro, em tese e nos sonhos um lugar paradisíaco. Aqui é o indivíduo que passa a refletir prá valer sobre si mesmo. Porque pimenta nos olhos dos outros é refresco, já dizia o ditado. Mas e quando for comigo? E quando você tiver que se perguntar "O que eu tenho a ver com isso"? E quando a morte não for um assunto distante, que acontece com alguém distante, mas um assunto seu?
Olam Habá: o Paraíso ou a Volta dos Mortos Vivos?
Isso me fez lembrar dos filmes B de terror do tipo "A Volta dos Mortos Vivos" - mas suponho que não era esta cena grotesca que os rabinos tinham em mente. Segundo a tradição judaica, o Olám Habá é um mundo futuro que existirá na Era Messiânica, quando os mortos irão ressuscitar. Neste caso, perguntam as pessoas de Alexandria - imagino que com uma cara preocupada e assustada: Afinal de contas, estes ex-mortos e futuros vivos contaminarão, ou não? Em outras palavras, quando entrarmos no Jardim do Éden, no Paraíso, seremos impuros, contaminados e contaminantes, intocáveis feito Zumbis? Mortos-vivos? Não? Seremos o que, então? Puros como os anjos? Mas anjos também são intocáveis... por serem anjos, não gente. Que Paraíso é este que não se pode comer, beber, dormir, nem tocar, nem ser tocado, seja zumbi ou seja anjo?
Aqui tenho a impressão de que o rabino ou achou por bem não dar explicações muito complicadas para quem não teria como compreendê-las - e de novo, eu me incluo nelas - ou aplicou o bom humor rabínico e deu a melhor resposta possível: Relaxa, gente: no dia em que o Mashiach chegar e nós ressuscitarmos, não seremos nem zumbis nem anjos. Nós não iremos pro inferno nem iremos pro céu, como dizem por aí. Quando esse tempo chegar, seremos isso que vocês estão vendo: gente como a gente, no mundo - ainda que seja o Mundo Vindouro. Quando chegarmos lá a gente pensa no que fazer.
Não tive como não me lembrar do final da segunda bênção da Amidá, quando agradecemos a Deus por ressuscitar os mortos.
Mechaiê Hametim: Bendito Sejas, por ressuscitar os mortos
Pensei comigo mesmo:
1º) Ninguém ressuscita sozinho. Como assim? Então eu preciso que Deus me faça este favor? Não seria melhor fazer isso por conta própria e não dever favores prá ninguém, nem prá Deus? Pois é. Não. Esta ficaremos devendo prá Ele, não tem jeito. Ninguém ressuscita, nem ressuscitou, nem ressuscitará por conta própria. É preciso um outro que o ressuscite - seja Elisha na história bíblica, seja Deus, quando Ele achar que é chegada a hora. E todo mundo junto, porque todo mundo é filho de Deus, igualmente.
Diz a tradição judaica que o sono é o irmão mais novo da morte. Se de acordo com a tradição rabínica, nem do sono a gente acorda por conta própria - ou não precisaríamos agradecer a Deus por nos devolver a vida a cada manhã - imagina se dá prá acordar da morte sozinho? Não dá, ponto.
2º) E a pílula do dia seguinte, quem vai inventar? Digamos que Deus tem o poder de um dia ressuscitar os mortos quando Ele achar que é chegado o momento. E depois, no dia seguinte, como ficamos?
Aí meu amigo, o problema será nosso. Deus já terá feito a parte dele, que vamos combinar, não é pouca coisa. Como lidar com um mundaréu de gente ressuscitada - como pensaremos, agiremos, sentiremos, viveremos, amaremos, comeremos, beberemos, colocaremos o papo em dia, trataremos os outros - e até como morreremos de novo, se é que neste tempo as coisas não serão diferentes?
O rabino estava certo. Temos muita coisa pra nos preocuparmos até que este dia complicado chegue. E quando chegar a gente vê como faz. Cada coisa ao seu tempo.
Complicado seguir esta máxima né? Prá mim, pelo menos, é. Mas que ela evita muito sofrimento, lá isso evita. Não quer dizer "viva o hoje que o amanhã é incerto". Mas talvez "viva o hoje e pense no amanhã, mas o futuro, o futuro lá longe, relaxe, porque a Deus pertence". Quer dizer: a gente às vezes perde tanto tempo se preocupando com questões tão distantes ou com fantasias do tipo "E se...?" que não tem cabeça prá resolver tantas outras mais próximas e geralmente mais simples, porque a cabeça está em outra galáxia.
Tudo isso eu fiquei pensando enquanto estudava uma questão prática, mas que está tão distante do nosso dia a dia: quando morre alguém, como lidar com o morto?
Hoje a maioria das pessoas não precisa se preocupar em como lidar com um cadáver. A morte foi escondida dentro dos hospitais e velórios. Outros fazem isso pela gente. Aí somos poupados de ver um cadáver ( é um alívio: eu vi uma vez na vida e não dormi por três dias, sonhando com aquela mulher morta no caixão...) Só que aí também desaprendemos de lidar com a morte e criamos toda sorte de fantasias e idealizações para este instante que, de tão desconhecido, nos aterroriza.
É uma ansiedade que nos perturba muito enquanto não identificamos por que estamos ansiosos. Quando o monstro ganha um nome, fica mais fácil de lidar com ele - e de repente, nem é o monstro que imaginávamos ser, ou nem é um monstro.
O artigo de Véred Nôam, האומנם 'לא המת מטמא'? לדיוקנה של הטומאה בספרות התנאים (Será Fato que "O Morto Não Contamina"? Uma Análise da Tum'á nos Escritos dos Tanaím) para o curso de Talmud, nem fala nada disso. O tema da pesquisadora é: os rabinos da época do Talmud consideravam que um cadáver era inerentemente impuro e contaminava quem o tocasse, ou esta "força de contaminar" não é inerente ao corpo morto, mas sim uma construção intelectual que foi feita halachá, uma lei criada artificialmente para se lidar com um corpo sem vida?
O que me chamou a atenção mesmo no artigo foi uma citação retirada do Talmud, no Tratado Nidá - que parte da idéia de que uma mulher no período menstrual "está impura" ou "pode contaminar" para estender o tema a tudo o que sob certas condições se torna impuro e com poder ou não de contaminar, e assim precisa ser temporariamente isolado - ou não.
Ih, mas isso dá muito mais pano prá manga... a mulher fica impura mesmo neste período, ou esta é uma construção intelectual, criada artificialmente para justificar ou embasar certas práticas e costumes, como evitar relações sexuais no período e impedir a mulher de se aproximar dos rolos da Torá? Não dá pano só prá manga, dá prá uma confecção inteira. Bom, vamos nós finalmente ao responsável por toda esta viagem: o Talmud.
Três Perguntas Tolas - Será? שלשה דברי בורות
Rabi Yehoshua ben Chanania se deparou com algumas pessoas de Alexandria curiosas em saber em quais condições um corpo morto é capaz de contaminar quem dele se aproxima. Mas parece que elas tinham dificuldade de entender teoricamente não só como lidar com um corpo sem vida, mas sobre o que é a morte - elas e quase todo mundo, entre as quais eu me incluo. Ao encontrarem o rabino, perguntaram:אשתו של לוט, מהו שתטמא?
אמר להם: מת מטמא ואין נציב מלח מטמא.
בן שונמית, מהו שיטמא?
אמר להן: מת מטמא ואין חי.
מטמא מתים לעתיד לבוא: צריכין הזאה שלישי ושביעי או אין צריכין?
אמר להן: לכשיחיו נחכם להן.
"Rabino, a mulher de Lot, contamina?”אמר להם: מת מטמא ואין נציב מלח מטמא.
בן שונמית, מהו שיטמא?
אמר להן: מת מטמא ואין חי.
מטמא מתים לעתיד לבוא: צריכין הזאה שלישי ושביעי או אין צריכין?
אמר להן: לכשיחיו נחכם להן.
O rabino respondeu: “Um morto contamina, mas estátua de sal não.”
“E o filho da shunamita, contamina?”
“Um morto contamina, mas um vivo não.”
“A contaminação dos futuros mortos: é necessário aspergir no terceiro e no sétimo [dias após a morte, para purificar] ou não precisa?”
E o rabino respondeu: “Quando ressuscitarem saberemos por eles”.
Uma questão de gênero
Um detalhe: no texto em hebraico, o pronome na 3ª pessoa do plural aparece uma vez como lahem (para eles) e duas vezes como lahen (para elas). Mas lahen também pode se referir ao masculino, como ocorre muitas vezes, quase sempre, no Talmud. Se forem mulheres, pode se imaginar a maior preocupação delas com o triste fim da mulher de Lot, sobre o que será do "filho da shunamita" ou o que será de nós em um futuro distante. Se forem homens, poderia se pensar talvez em questões outras, técnicas, de leis, etc. Como aparecem no texto os dois, lahem (para eles) e lahen (para elas), podemos ficar com a suposição de que a morte preocupa homens e mulheres, talvez de modo distinto, mas igualmente perturbador. E não me venham com "isso é detalhe". Rabi Akiva interpretava até as coroas que embelezam algumas letras do alfabeto, que por sua vez gerou um lindo midrash - que fica para outra vez.
Chozer Biteshuvá ou Chozer Bisheelá?
Os rabinos eram mestres em levantar um mundo de questionamentos em meia dúzia de linhas e os primeiros a entender que ser um chozer bisheelá (voltar a perguntar, a duvidar, a repensar, a refletir) é mil vezes mais importante do que ser um chozer biteshuvá (voltar à resposta, interpretado por alguns como "arrepender-se", aceitar o jugo da Lei tal como foi estabelecida e fixada por determinados sábios de determinada época - sem espaço para questionar, porque são mais sábios do que nós: que se obedeça; que se cumpra a lei).
A primeira pergunta o rabino tirou de letra. A mulher de Lot não teve uma morte natural. O seu corpo não se tornou um cadáver, mas uma estátua de sal - e sal não contamina. Esta foi fácil.
A segunda pergunta é mais complicada, porque se refere a um evento particular e nada corriqueiro de um garoto que é ressuscitado por Elisha, de quem a Bíblia Hebraica conta que tinha talentos, digamos, fora do comum. Mas outra vez o rabino se sai muito bem. Se alguém morre e você tocar no cadáver, ficará contaminado, impuro, deve haver procedimentos específicos e no momento certo, dá prá entender. Mas e na hipótese desta pessoa ressuscitar, como ocorreu com o "filho da shunamita", ele continua impuro, contaminará os outros quando for dar a mão, um beijo, ou mesmo quando for falar de perto? É claro que não! O rabino deixa claro o óbvio: que uma pessoa viva não está morta, não transmite contaminação referente aos mortos, não tem aspecto de morta, não causa ojeriza como se estivesse morta - e portanto, deve ser tratada como todo mundo. E como a gente age hoje, táchlis, com pessoas que passaram situações mais brandas do que a morte - ou seja, qualquer coisa que acontece com todos os que estão vivos: tocamos, visitamos, telefonamos?
A terceira pergunta mostra um avanço, uma visão mais abstrata. Aqueles homens e/ou mulheres de Alexandria perguntam ao rabino como será no Olam Habá, no Mundo Vindouro: todos os que um dia vão morrer - ou seja, eu, você, todos nós - caso ocorra de ressuscitarem, estarão impuros?
O legal é que agora o que eles perguntam não é mais sobre a infeliz da mulher de Lot que virou estátua ao querer olhar um mundo que já não existia mais, tampouco sobre um garoto ressuscitado por um homem dotado de poderes extraordinários como era Elisha. Agora querem saber se eles, ou seja, se cada pessoa do mundo será condenada a ser impura justamente quando ressuscitar no Mundo Vindouro, em tese e nos sonhos um lugar paradisíaco. Aqui é o indivíduo que passa a refletir prá valer sobre si mesmo. Porque pimenta nos olhos dos outros é refresco, já dizia o ditado. Mas e quando for comigo? E quando você tiver que se perguntar "O que eu tenho a ver com isso"? E quando a morte não for um assunto distante, que acontece com alguém distante, mas um assunto seu?
Olam Habá: o Paraíso ou a Volta dos Mortos Vivos?
Isso me fez lembrar dos filmes B de terror do tipo "A Volta dos Mortos Vivos" - mas suponho que não era esta cena grotesca que os rabinos tinham em mente. Segundo a tradição judaica, o Olám Habá é um mundo futuro que existirá na Era Messiânica, quando os mortos irão ressuscitar. Neste caso, perguntam as pessoas de Alexandria - imagino que com uma cara preocupada e assustada: Afinal de contas, estes ex-mortos e futuros vivos contaminarão, ou não? Em outras palavras, quando entrarmos no Jardim do Éden, no Paraíso, seremos impuros, contaminados e contaminantes, intocáveis feito Zumbis? Mortos-vivos? Não? Seremos o que, então? Puros como os anjos? Mas anjos também são intocáveis... por serem anjos, não gente. Que Paraíso é este que não se pode comer, beber, dormir, nem tocar, nem ser tocado, seja zumbi ou seja anjo?
Aqui tenho a impressão de que o rabino ou achou por bem não dar explicações muito complicadas para quem não teria como compreendê-las - e de novo, eu me incluo nelas - ou aplicou o bom humor rabínico e deu a melhor resposta possível: Relaxa, gente: no dia em que o Mashiach chegar e nós ressuscitarmos, não seremos nem zumbis nem anjos. Nós não iremos pro inferno nem iremos pro céu, como dizem por aí. Quando esse tempo chegar, seremos isso que vocês estão vendo: gente como a gente, no mundo - ainda que seja o Mundo Vindouro. Quando chegarmos lá a gente pensa no que fazer.
Não tive como não me lembrar do final da segunda bênção da Amidá, quando agradecemos a Deus por ressuscitar os mortos.
Mechaiê Hametim: Bendito Sejas, por ressuscitar os mortos
Pensei comigo mesmo:
1º) Ninguém ressuscita sozinho. Como assim? Então eu preciso que Deus me faça este favor? Não seria melhor fazer isso por conta própria e não dever favores prá ninguém, nem prá Deus? Pois é. Não. Esta ficaremos devendo prá Ele, não tem jeito. Ninguém ressuscita, nem ressuscitou, nem ressuscitará por conta própria. É preciso um outro que o ressuscite - seja Elisha na história bíblica, seja Deus, quando Ele achar que é chegada a hora. E todo mundo junto, porque todo mundo é filho de Deus, igualmente.
Diz a tradição judaica que o sono é o irmão mais novo da morte. Se de acordo com a tradição rabínica, nem do sono a gente acorda por conta própria - ou não precisaríamos agradecer a Deus por nos devolver a vida a cada manhã - imagina se dá prá acordar da morte sozinho? Não dá, ponto.
2º) E a pílula do dia seguinte, quem vai inventar? Digamos que Deus tem o poder de um dia ressuscitar os mortos quando Ele achar que é chegado o momento. E depois, no dia seguinte, como ficamos?
Aí meu amigo, o problema será nosso. Deus já terá feito a parte dele, que vamos combinar, não é pouca coisa. Como lidar com um mundaréu de gente ressuscitada - como pensaremos, agiremos, sentiremos, viveremos, amaremos, comeremos, beberemos, colocaremos o papo em dia, trataremos os outros - e até como morreremos de novo, se é que neste tempo as coisas não serão diferentes?
O rabino estava certo. Temos muita coisa pra nos preocuparmos até que este dia complicado chegue. E quando chegar a gente vê como faz. Cada coisa ao seu tempo.
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