Coluna semanal no jornal Correio de Sergipe
Rabino Uri Lam, Congregação Israelita Mineira (CIM), Belo Horizonte, MG
Tantas tragédias ocorrendo: Malis, Paris, Beirutes, Telavives - além, claro, da tragédia de Marianas, desembocando lama nos Atlânticos. No plural, porque a tragédia acomete as pessoas, as casas, os animais, os rios, os teatros, cinemas, as almas. O impulso de morte corre à solta com o uso sorrateiro, clandestino, estúpido da religião como pano de fundo. Enquanto isso, nos últimos dias, me pedem para falar de amor. Amor a Deus, amor entre seres humanos, amor ao próximo – seja ele de fato próximo ou distante. Amor a Deus – diz a minha tradição, a tradição judaica – se realiza ao amar o outro. Por comparação, o ódio, o desejo de matar e a realização do ato de matar, mesmo que para isso se saiba que vá morrer, é o oposto do amor. Não; é a falta, a ausência de amor ao ser humano, à vida fora de si mesmo, à vida dentro de si mesmo. Uma religião que fala em Deus não tem como mirar o assassinato de seres humanos; até onde sei, as religiões monoteístas ocidentais entendem que, ao matar um ser humano, diminui-se a presença de Deus no mundo.
Amar o próximo e amar a Deus, diz o rabino Adin Steinsaltz, pressupõe amar a si mesmo. Se amo a minha vida, se amo a vida ao meu redor, o impulso infantil de matar o próximo – infantil, pois imaginado sem maiores consequências, ou sem a capacidade de medi-las – é suprimido pelo carinho, respeito, ou no mínimo dos mínimos, por se entender que matar por matar é uma estupidez, um crime. Mas para amar a mim mesmo, segundo Steinsaltz, é preciso sentir-se amado. Na base, por definição, Deus nos ama. Na tradição judaica, os antigos rabinos nos transmitiram esta ideia ao organizarem as orações da liturgia judaica de modo que, antes, vem uma benção que afirma o amor de Deus pelo povo judeu; e em seguida, vem a principal oração de fé do povo judeu, o Shemá Israel, que nos traz como imperativo amar a Deus com todo o nosso coração, com toda a nossa alma (vida) e com todas as nossas forças. Amar a Deus com todo o nosso coração, dizem nossos sábios, significa amar a Deus tanto nos momentos de alegria e plenitude quanto nos momentos de amargura e tristeza. O coração, afinal, é composto do impulso para o bem e do impulso para o mal; ou da pulsão de vida e da pulsão de morte, numa linguagem mais psicanalítica. Na tradição cristã, toma-se por dado que Jesus ama seus fieis, incondicionalmente. Na tradição judaica, Deus ama o povo de Israel, incondicionalmente. Se somos amados por definição, deveríamos nos tornar mais seguros e dispostos para amar – a Deus e ao próximo. Se é bom e agradável o efeito de eu saber que sou amado, este mesmo efeito construtivo fará bem àquele ou àquela a quem eu amo. O amor pode viralizar, como se diz hoje em dia.
Na França, a reação ao ódio foi uma demonstração de amor que eu só havia visto acontecer em Israel – diga-se de passagem, em Israel a reação é mais rápida; fruto da experiência com o terror. Uma semana depois, os franceses saem às ruas para celebrar a vida, a liberdade, o amor fraterno, o amor ao ser humano. O amor que desafia o terror equivale, para o terrorista, ao terror que desafia o amor, para o ser humano. É para ele assustador que o amor e a felicidade ressurjam, sem medo – ou mesmo com medo. Há alguns anos, em Israel, poucas horas após o atentado em uma boate em Tel Aviv que matou cerca de 20 adolescentes, o pessoal limpou o local, os feridos foram hospitalizados, os mortos recolhidos e chorados por seus parentes e amigos – e a boate fez questão de reabrir e voltar com a balada toda: o recado é que a vida teima em ser vivida e o amor teima em amar. Sejamos teimosos! Os exércitos russos, americanos e franceses têm armas. Nós só temos amar. Usemos o que temos. Vamos viralizar o amor.
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