Congregação Israelita Paulista (CIP)
Prédica/Drashá: Uri Lam
MÃO FORTE E BRAÇO ESTENDIDO
Todo dia importante, que gera grandes expectativas, que podem levar a grandes vitórias ou a grandes frustrações, a grandes alegrias ou a grandes tristezas, todo dia com o potencial de servir como divisor de águas em nossas vidas, parece ser mais longo que os outros dias. Rosh Hashaná tem todas estas características. É Iom Hadin, o Dia do Julgamento. Sempre que somos expostos a julgamento, a críticas, parece que os minutos não passam.
Rosh Hashaná, o Dia do Julgamento, não ocorre num tribunal comum. Diante de nós, como se estivesse numa bimá celestial, está Deus. E aqui na Terra, estamos nós. Alguns de nós pode pensar: como Deus pode nos avaliar, estando Ele lá, e nós aqui? No dia 12 de abril de 1961, há 50 anos, a bordo da nave Vostok 1, o cosmonauta Iuri Gagarin, primeiro cosmonauta a viajar pelo espaço, a dar uma volta completa em órbita ao redor do planeta, afirmou lá de cima: “A Terra é azul”. Se a visão de Deus for parecida com a de Iuri Gagarin, como Ele pode nos julgar, se tudo o que Ele vê é que a Terra é azul?
Por outro lado, conta-nos o Midrash Devarim Rabá, que embora Deus tenha colocado os céus nos céus e a terra na terra, veio o homem e, por obra de suas mãos, colocou tudo de cabeça para baixo.
Deus, que estava no céu, desceu para a terra, até o Monte Sinai. Por sua vez, Moisés, que estava na terra, subiu aos céus, até o Monte Sinai. Impossível não nos lembrarmos do afresco de Michelângelo, em que a “mão” de Deus quase toca a mão do Homem. Quase, mas não toca.
Nunca, jamais imaginamos Deus a segurar a Torá e a entregá-la para Moisés “em mãos”. A Mishná, no tratado Avot, com os ditos dos nossos antepassados, diz que Moisés recebeu a Torá no Sinai e a transmitiu para os demais líderes numa corrente intermitente. Al Pi Adonai, beiad Moshé – pela boca de Deus, pelas mãos de Moisés. Esta corrente de transmissão chegou até nós, hoje, início de 5772. Pelas mãos de Deus? Não! Pelos ditos de Deus, mas a obrigação de transmitir a Torá é, e deve ser, feita pelas nossas próprias mãos, pelos nossos próprios atos. Uma das principais mensagens contidas, na transmissão da Torá por Moisés, até chegar a nós é: hevú metunim badin – sejam moderados no julgamento. Bom saber. Afinal, hoje é Iom Hadin, o Dia do Julgamento.
Lemos na Torá, e também na Hagadá de Pessach, e nas nossas rezas diárias no sidur, e também em nossos machzorim de Rosh Hashaná e Iom Kipur, que Deus nos retirou do Egito beiad chazacá uvizeroá netuiá, com mão forte e braço estendido. Esta foi a frase que ecoou nos meus ouvidos nos últimos dias, e que inspirou as palavras desta manhã: Mão forte e braço estendido. O Êxodo do Egito nos remete a Pessach ─ mas este mesmo êxodo é lembrado também em Rosh Hashaná. Avinu, Malkenu, nosso Deus bondoso como um pai, e nosso Deus firme como um rei, nos tirou do Egito, com mão forte e braço estendido. A imagem da mão forte é clara: a mão poderosa de um rei. E o braço estendido? Lembro-me dos desenhos de hagadot de Pessach antigas, com um looongo braço de Deus.
Mas hoje, Rosh Hashaná, quero propor a vocês outra imagem deste looongo braço: um braço acolhedor, um braço de abraço. Enquanto Deus, nosso Rei, atua com mão forte, o mesmo Deus, nosso Pai, nos abraça e nos acolhe com o braço estendido.
Quando lemos, nesta manhã de Rosh Hashaná, que Deus ordena a Avraham Avinu para levar o seu filho Itschac, que tanto ama, para ser sacrificado, se nos colocamos no lugar de Abrahão e de Sara, podemos sentir a mão forte de Deus a esmagar o nosso pescoço, a ponto de não termos ar nem para responder um “sim”, nem um “por que, Deus?”. Por que amarrar e sacrificar o próprio filho???
Neste Iom Hadin alguns de nós podemos pensar se no ano que passou agimos como Abrahão, que se calou diante da ordem Divina de sacrificar o próprio filho. Até que ponto sacrificamos nossos filhos, nossos pais, nossos irmãos, nossos amigos, nossos funcionários, nossos colegas? Até que ponto nos calamos? Até que ponto? Até que ponto, depois de criá-los, festejá-los, alimentá-los, cuidarmos deles, rirmos junto com eles, estimulá-los, até que ponto depois nós os amarramos aos nossos próprios valores e os sacrificamos? Até que ponto estamos à beira de sacrificarmos alguém neste ano que se inicia?
Deus ordenou que Abrahão amarrasse Isaac e o sacrificasse, mas foi o próprio Abrahão quem amarrou o próprio filho, com as próprias mãos. Alguns podem dizer: “Abrahão foi fiel a Deus! Abrahão demonstrou até onde pode ir, em nome de Deus!” Mas será isso o que Deus queria de Abrahão? Será que é isso o que Deus espera de nós, neste Dia de Julgamento? Que não importa o que Ele nos diga, que não interessa o que Ele nos ordene, o importante é que façamos valer a palavra de Deus? Nem que seja matar o próprio filho?
Nós nos acostumamos a destacar, na história do sacrifício de Isaac, o fato de, no último segundo, um anjo ter impedido a mão de Abrahão de matar o próprio filho. Este teria sido o divisor de águas entre o recém-nascido povo de Israel e os demais povos da região, acostumados a sacrifícios humanos. Nós não fazemos sacrifícios humanos!!! Nós somos um povo ético! Nós não matamos à toa!!!
Quero propor hoje um outro foco, uma outra maneira de ver o sacrifício de Isaac. Vamos nos lembrar da cena: Abrahão e Isaac chegaram ao lugar que Deus ordenou que fosse feito o sacrifício. Abrahão ergueu ali um altar, preparou a lenha, amarrou seu próprio filho, com suas próprias mãos, e fez Isaac se deitar sobre o altar. Abrahão estendeu sua mão e pegou a faca para sacrificar o filho. Mão forte e braço estendido. A mão pronta para uma ação forte. O braço estendido para quê?
Neste Iom Hadin, de Rosh Hashaná, quando Deus, Nosso Pai e Nosso Rei, começa a fase final do nosso julgamento, lembramos que Ele usou a Sua mão forte para nos livrar do Faraó e da escravidão, e que nos abraçou com Seu braço estendido, como um pai e com uma mãe fazem com seus filhos.
A história de Isaac nos leva para um grande dilema: a quem estendermos o braço? Contra quem usarmos a mão forte? Um anjo de Deus aparece a Abrahão e lhe diz, lá do céu: “Abrahão, Abrahão!” E ele responde: “Hineni, estou aqui!”. O anjo está lá no céu. Abrahão está aqui, na terra. Os anjos estão tão próximos do homem que, às vezes, nos momentos críticos, podemos ouvi-los. Mas não tocá-los. E mais: eles não podem impedir nossas mãos. As obras de nossas mãos são nossa responsabilidade. Se vamos usar a nossa mão forte para nos defendermos ou para nos boicotarmos, para produzir obras de arte ou para puxar o gatilho, a decisão e o ato em si mesmo é só nosso. Mas os anjos podem falar e até gritar com a gente para pensarmos melhor antes de fazermos alguma bobagem. E na nossa história, o anjo gritou com Abrahão: “Não estenda o seu braço sobre o moço e não lhe faça nada; agora sei que você teme a Deus”. O anjo sabe, afinal, que Abrahão é temente a Deus e que faria qualquer coisa por Ele. Mas não é isso o que Deus espera de Abrahão!!!
Quanta gente, hoje em dia, faz qualquer coisa em nome de Deus? Quanta gente, hoje em dia, mata, chantageia, mente, engana, em nome de Deus? É isso o que Deus espera de nós?
O anjo impede Abrahão de sacrificar o próprio filho porque o braço estendido de um pai não serve para matar, porque o braço estendido de um pai e de uma mãe servem para abraçar!!! É como se Deus dissesse: Abrahão, eu sei que você é temente a Mim, afinal, eu sou o Seu Rei. Mas o que Eu espero de você é que você use a sua mão forte para se defender, e que você estenda o seu braço para abraçar o seu filho, não para amarrá-lo, e jamais para matá-lo! Abaixe a mão Abrahão!
Ser temente a Deus, ser religioso, acreditar em Deus é fácil. Mas é pouco. Não é isso o que Deus espera de nós. Deus espera de nós ações práticas, braços estendidos para acolher, para abraçar, para ensinar, para indicar o caminho para os nossos filhos, para os nossos amigos, para quem pudermos ajudar a seguir pelo caminho do bem. Usar somente de mão forte com nossos filhos pode significar amarrá-los aos nossos próprios valores e temores. Estender-lhes a mão e abrir espaço para que escolham seus próprios caminhos, ainda que não sejam os nossos, e abraça-los nos momentos de dificuldade, com um abraço estendido, gostoso e protetor ─ pode ser uma boa dica de o que Deus espera de nós para o ano 5772.
Shaná Tová
Uri Lam