terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O melhor lugar para se rezar
Recebi de uma colega do seminário rabínico um texto muito bom, publicado há dois anos no jornal israelense Haaretz, na coluna de Yedidia Meir, religioso ortodoxo. O contexto foi uma discussão entre os alunos, no fórum que temos todas as segundas feiras, sobre as formas de rezar, sobre kéva e kavaná, sobre a oração fixa e a intenção, atenção, concentração durante a reza. Em outras palavras - é possível rezar todo dia a mesma coisa de novo como se fosse novo de verdade? Para alguns sim, para a maioria dos mortais parece que não.
E quando li o artigo abaixo quis compartilhar com vocês, pelo tanto que me identifiquei com ele. Que bom saber que judeus ortodoxos - como o articulista - e reformistas - como eu -  sentem o mesmo ao rezar! Eu me faço algumas das mesmas perguntas que ele: por que, em Israel muitas vezes me emociono e rezo junto com o rádio, quando por exemplo um cantor canta sua versão popular de Avinu Shebashamaim (Deus do céu - literalmente), enquanto estudo, tomo banho, viajo de ônibus, caminho, ou fico parado no trânsito, e não necessariamente quando estou no local supostamente mais preparado para se rezar - a sinagoga? Por que sinto que rezo mais e me conecto mais com Deus quando estudo ou quando tenho aquelas conversas com amigos, sem começo nem fim, que misturam filosofia, judaísmo, literatura e arte, do que quando coloco tefilin e talit pela manhã, no horário supostamente mais adequado e com os instrumentos supostamente mais apropriados para se rezar? Fiquei feliz, porque o Yedidia me mostrou que não sou o único a me sentir assim.
Boa leitura e, se animarem, boa corrida!
Alguém com quem correr 
Yedidia Meir
Tradução: Uri Lam
Uma das frases que um judeu religioso mais escuta é "Venha cá, deixe-me lhe dizer o que me irrita na religião". Normalmente o sujeito à sua frente primeiro elogia o judaísmo e suas práticas - "Escuta, o judaísmo tem coisas muito boas a oferecer. A shivá (período de luto de 7 dias), por exemplo. Diga lá, não é o máximo mesmo?" Então vem a parte que mais os irrita. Por exemplo, esta coisa supérflua de não poder viajar no Shabat. Por quê? Quem precisa disso? Que importa? Ou todo este drama com os frutos do mar. Totalmente desnecessário.
Tenho muitas respostas, acredite, mas às vezes eu também digo o que mais me irrita na religião. Isso acontece quase todos os dias: você está em uma oração importante para você, que faz sentido prá você e para a qual você se preparou prá colocar intenção em cada palavra que diz - e de repente, você vê que a reza, a tefilá, acabou. E eu não senti nada. Quero dizer, estou realmente concentrado, mas totalmente em outras questões: trabalho, filhos, conta bancária, por que ainda não substituíram o Gadi Sukenik (telejornalista israelense - para mim seria o mesmo que se perguntar "porque ainda não substituíram o Galvão Bueno" - Uri).
Uma breve explicação aos meus leitores que por acaso não rezam: ao contrário do Lulav, das velas de Shabat ou dos tefilin, a tefilá, a reza, não é um mandamento físico, mas um trabalho espiritual difícil e desafiador. Para os grandes rabinos e para as pessoas justas e muito boas, a arte de rezar talvez lhes seja fácil, mas para o judeu médio é muito difícil rezar a cada vez como se fosse a primeira vez, com sentido renovado. E é exatamente isso o que se espera que ele faça. Alguém escreveu uma vez que a reza deve ser como um bom passeio de trem: a paisagem não muda, mas a todo momento você a admira por outro ângulo. Assim é também com a reza: o texto é o mesmo texto, mas o indivíduo viaja a todo momento em sua vida, não fica parado, e toda vez se espera que ele vivencie a reza a partir do estado interno em que se encontra.
Chega de teoria, vamos para a realidade: eu vou à sinagoga no sábado de manhã, recito a oração Nishmat kol chai (a alma de todo ser vivo...), uma das orações mais significativas - e não sinto nada. Em seguida, na segunda-feira à noite, enquanto corro de camiseta e bermuda, já no terceiro quilômetro, ouço no meu iPod Nishmat kol chai na melodia de Carlebach com as mesmas palavras, e de repente - uma emoção enorme e uma cavaná gigantesca, uma concentração direcionada super intensa: "A alma de todo ser vivo abençoará o Teu Nome, Eterno nosso Deus, e o espírito em todo o corpo glorificará e elevará a Tua lembrança, nosso Soberano para sempre - da eternidade à eternidade Tu és Deus. Além de Ti não temos nenhum outro Rei que nos salve e nos redima, que nos erga e nos resgate, que nos sustente, nos aceite e nos acolha em todo momento de dificuldade e de sofrimento - além de Ti não temos um rei que nos ajude e que confia em nós."
Aí o judeu pira. Por quê? Porque no Shabat pela manhã, quando se deve recitar esta oração, eu queria tanto, realmente queria, mas ela simplesmente não funciona. E justo agora, no meio da corrida, de repente ela vem? Isso, meu caros, é a coisa que mais me irrita na religião.
Decidi fazer uma pesquisa de campo e descobri que isso não acontece só comigo, que também outros dóssim (gíria israelense para "ortodoxos") se conectam mais facilmente com Deus enquanto cozinham, dirigem, fazem compras e até mesmo quando lavam pratos escutando música judaica ao fundo. É exatamente por isso que nos últimos tempos decidi mudar de tática: quando a reza do Shabat pela manhã surge na segunda feira à noite durante a corrida, simplesmente deixo rolar. Se não acontece no Shabat, que seja pelo menos na segunda feira. Reza esportiva também está valendo.
Assim que a canção termina, após a emoção de "por isso, os órgãos que distribuiste dentro de nós, o espírito e a alma que insuflaste em nós, a língua que puseste em nossa boca - todos Te aceitam, abençoam, elogiam, santificam e dedicam o Teu Nome, nosso Soberano", eu limpo o suor com a toalha, coloco a camiseta para dentro da bermuda - para não ficar desleixado - e digo no coração: "Que seja a Sua vontade que esta corrida Te seja tão importante quanto o meu assento na sinagoga, que este iPod seja como o meu sidur, que a toalha em torno do meu pescoço seja como o meu Talit com tsitsiot, e que a emoção que senti com esta canção Te seja tão importante quanto a reza em seu momento e na sua hora." Então continuo a correr.

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