Uri Lam
publicado na revista Este Mês, da CIP, novembro de 2009
Há setenta anos o mundo conheceu um dos períodos mais sombrios de toda a sua história. Enquanto a perseguição e assassinato de judeus já era uma marca da famigerada Alemanha nazista, em 1939, junto com o início da 2ª Guerra Mundial, o genocídio acelerou de uma forma nunca vista e ganhou uma mórbida escala industrial. Anos depois o mundo ficaria horrorizado com as imagens da Shoá, de judeus que, quando vivos, eram esquálidos, frágeis, à mercê; na mente nazista insana, era o testemunho do ocaso de um povo.Há setenta anos, do outro lado do oceano, era publicada a primeira edição da revista em quadrinhos Superman, o Super Homem. Ao mesmo tempo em que tantas crianças judias eram salvas ao serem embarcadas nos kindertransports, trens que as levavam para lugares seguros distantes da destruição, em Krypton o cientista Jor-El e sua esposa Lara construíram uma espécie de cesto intergaláctico e nele embarcaram seu filho Kal-El, na derradeira esperança de que fosse o sobrevivente daquele velho mundo prestes a ser destruído. A nave com o bebê alcançou o novo mundo, foi resgatada e adotada pelo casal Jonathan e Marta Kent.
Lembro-me de, quando criança, ter sido levado a um supercinema em São Paulo com meu irmão e alguns dos meus melhores amigos para assistir ao Super Homem. Um cinema que não se compara aos Multiplex de hoje em dia, pois era, aos meus olhos, muito, mas muito melhor, bem mais divertido. Três enormes colunas de poltronas estavam voltadas para três telas diferentes dentro do mesmo espaço. Fascinado, eu acompanhava a performance maravilhosa e heróica do Super Homem, ora voando de tela em tela, ora multiplicado por três. Fascinado, eu não sabia para qual tela olhar, com medo de perder o que se passava nas outras duas... Logo no início eu passei a admirar o Super Homem, e a identificação veio assim que escutei seu nome: Kal-El. Lembrava-me os nomes de tantos amigos e colegas da escola, dos movimentos juvenis judaicos e das ruas do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Daniel, Rafael, Michel, Ariel – Kal-El. “O Super Homem bem que poderia mesmo ser judeu”, eu pensava, esperançoso, do alto dos meus 9 anos de idade.
Não há como deixar de pensar: quantos Super Homens e Super Mulheres deixaram seus pais no velho mundo para nunca mais, sobreviveram em um novo mundo, e lá salvaram vidas, ajudaram outras pessoas em situações desesperadoras, fizeram o que parecia impossível?
Quantos de nome Joel, Gabriel e Daniel foram adotados e tiveram seus nomes mudados para outros, digamos, mais neutros, menos judaicos? Os próprios criadores do Super Homem, os jovens judeus Jerry Siegel e Joe Shuster, tiveram que adotar pseudônimos. Nos EUA de então havia clubes e bairros inteiros que simplesmente barravam a entrada de judeus. Antes ainda de criarem o Super Homem, Siegel e Shuster já escreviam suas histórias em quadrinhos sob o pseudônimo de Bernard J. Kenton – talvez daí tenha vindo a inspiração para o sobrenome da sua mais famosa criação, Clark Kent. Tal como Moisés deixou seus pais para trás em um cesto e cruzou o Nilo para ser adotado e se tornar o maior dos super heróis da história do povo judeu, e tal como Kal-El deixou seus pais para trás em uma mininave espacial, ganhou o pacato nome de Clark Kent e tornou-se mundialmente famoso como o Super Homem, ao salvar não apenas a memória do povo de Krypton, mas todo ser humano em perigo, do mesmo modo aquelas crianças judias deixaram seus pais nos países europeus ocupados pelos nazistas e, uma vez em segurança, muitas delas com novos nomes, tornaram-se médicos, professores, engenheiros, construtores, assistentes sociais, voluntários em instituições beneficentes, pais e mães, avôs e avós.
Tal como Moisés e Kal-El, muitas delas só souberam de suas identidades judaicas muitos anos depois. Assim como Moisés era gago e o Super Homem perdia suas forças sob a radiação da kryptonita, aqueles meninos e meninas dos kindertransports também tiveram suas fraquezas, seus temores, seus traumas de guerra. Mas eles serão nossos super heróis para sempre, pois suas vidas e principalmente, suas histórias de vida, ajudaram a garantir a sobrevivência do povo judeu.
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