O Mistério do Guefilte Fish
Uri Lam
Conta-se no Talmud (Horaiot 10a) que Rabi Gamliel e Rabi Iehoshua estavam navegando juntos. Gamliel levou a quantidade exata de pão para a viagem, mas Iehoshua levou além do pão, uma porção extra de farinha. A viagem durou mais do que o esperado, a provisão de pão de Rabi Gamliel acabou e o que manteve os dois sábios foi a farinha extra de Rabi Iehoshua.
Gamliel perguntou: “Como você sabia que teríamos um contratempo?”
Iehoshua respondeu: “Eu verifiquei que há um astro no céu que aparece a cada setenta anos, e que se aparecesse agora, poderia nos desviar da rota.”
Surpreso, Gamliel perguntou novamente: “Você é tão sábio, por que precisava subir neste navio para obter seu sustento?”
Rabi Iehoshua respondeu: “Antes que fale de mim, conheça dois alunos meus que estão em terra firme, Rabi Elazar e Rabi Iochanan. Eles sabem dimensionar exatamente quantas gotas existem no mar, mas não têm o que comer e nem roupas para vestir.”
Os rabinos do Talmud viveram cerca de 1.500 anos depois que o Povo de Israel entrou no meio do mar, por terra seca, naquele dia que separou os tempos de escravidão dos tempos de liberdade.
Rabi Gamliel levou para sua viagem a mesma quantidade de mantimentos que levaria para qualquer viagem. Rabi Iehoshua, por sua vez, entrou no mar prevenido: conforme a historia, levou em conta a configuração do céu, tão importante para todo navegador quanto o mar, como nos diz Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
Muito se discute, a respeito da saída do Egito, sobre os motivos pelos quais os israelitas foram ordenados por Deus a levar tanto ouro, tanto gado, tanto tudo para a viagem. Afinal, era muito mais do que o necessário para uns poucos meses de caminhada pelo mar de areias. Talvez eles não soubessem, mas Deus sabia que algo poderia desviá-los da travessia comum. Era preciso mais do que matsot feitas às pressas se quisessem levar a maior das aventuras de Israel adiante, aquela que faria de nós o Povo de Israel.
Na continuação do relato do Talmud, Rabi Gamliel lembra-se que quando estavam para subir no navio para trabalhar, ele convidou os alunos de Rabi Iehoshua a virem com eles, mas eles não vieram. De que adiantava estudarem Torá, se não se dispunham a trabalhar? De nada. É inútil saber quantas gotas de água há no mar se não houver disposição para entrar no mar e trabalhar pelo próprio sustento.
O mistério do Guefilte Fish no Seder de Pessach
A mesa do seder é o nosso navio. Ao nos sentarmos nela, entramos no mar, em terra seca e segura, em direção à liberdade, exatamente como fizeram nossos antepassados quando cruzaram o Mar Vermelho. O peixe não nasceu em embalagens plásticas nos supermercados e mais ainda, precisamos trabalhar para comprá-lo. E ainda mais: é preciso entrar em ação para recolhê-lo das águas. De nada adianta se dedicar obsessivamente aos detalhes do que significa cada gota do mar se não nos arriscarmos a entrar nas águas do mar para pescar. A escravidão que precisa ser deixada para trás é a escravidão das teorias e das teologias, do planejamento excessivo, das ideias brilhantes que ocupam tanto espaço no papel ou na memória do computador. A Torá é um mar de ideias e valores, mas somos nós que devemos fazer o esforço de nadar e decidirmos como e em qual estilo nadar. Se não nos esforçarmos além de conhecer sobre, e sem nos dedicarmos a conhecer vivendo, teremos que escutar a ironia de Maimônides, o Rambam (1135-1204), quando disse no seu Guia dos Perplexos mais ou menos assim: "Tudo bem meu caro, não quer se esforçar? Solte o corpo nas águas - e logo afundará".
Nossos sábios nos ensinaram que devemos nos dedicar à Torá, mas também devemos aprender a nadar. Quando a Hagadá de Pessach nos diz: “Quem tem fome, venha e sente-se conosco”, ela espera que cada um de nós cruze o mar e vá em direção a quem tem fome de comida, fome de conhecimento, fome de religiosidade, fome de idishkeit, fome de viver judaicamente, e convide-os todos para se juntarem a nós, ou em nossa metáfora, que subam para dentro do navio e cruzem o mar conosco.
Navegar é preciso, arregaçar as calças e saias, entrar no mar e se molhar é preciso – mesmo que a água às vezes esteja gelada ou bata no nariz − se quisermos em mais sete semanas nos encontrarmos no Monte Sinai para receber as novas instruções. Se quisermos renovar o nosso pacto com Deus quando Ele novamente nos entregar a Torá, temos que mergulhar na água e ir em sua direção. A Torá no deserto não tem valor. Ela só faz sentido se nós formos na sua direção, a estudarmos e principalmente, a colocarmos em prática.
Chag Pessach Sameach e Shabat shalom.
Uri Lam, de Jerusalem